terça-feira, 4 de junho de 2024

O diabo mora ao lado


Diferente da maioria dos prequels, A Primeira Profecia (The First Omen, 2024) teve à disposição um farto material sugerido para elaborar. O clássico que Richard Donner legou em 1976 tinha planos mais urgentes e ambiciosos, mas deixou algumas migalhas pelo caminho. O remake de 2006 – excomungado pela crítica e sucesso estrondoso de público – se limitou a atualizar a história. Já a subestimada série de 2016 foi uma sequência alternativa do original. Ficou com a cineasta Arkasha Stevenson a missão de triangular as raízes do mal em orfanatos católicos e cidadezinhas da velha Roma.

E essa nova investida entrega. Ainda não é aquela mega turnê por ruínas e cemitérios etruscos, mas o resultado é favorável. E promissor.

Stevenson é estreante em longas, mas já exibe uma assinatura cinemática bem particular. Sua câmera é atenta, quase documental, provavelmente influência dos seus tempos de fotojornalista no Los Angeles Times. Com habilidade, ela faz questão de capturar as pessoas ao fundo e a atmosfera das locações, elevando quase ao nível dos protagonistas. Isso confere uma sensação de imersão e tensão muito interessante e pouquíssimo hollywoodiana. O que é um baita elogio.

Essa opção de perspectiva mais, digamos, popularesca remete ao prólogo de O Exorcista, com o saudoso Max von Sydow vagando pelas ruas de Mosul, Iraque. Recortes do dia a dia do cidadão comum que sugerem certo realismo mágico, ainda que aliado a uma presença sinistra e invisível. E isso faz todo o sentido do mundo. Afinal, antes de falar do Anticristo é preciso falar do mundo e das pessoas que vivem nele.

Preparar o palco é essencial. Ou, no caso, fazer a cama.


A história começa com dois padres discutindo uma suposta conspiração dentro da igreja. Corta para a Roma de 1971, onde a jovem noviça Margaret é enviada para trabalhar num orfanato e, talvez, ser ordenada freira – tudo em meio a protestos de estudantes, trabalhadores e militantes de esquerda (opa!). Margaret é conduzida pelo Cardeal Lawrence até o orfanato, que é dirigido pela austera Irmã Silva. Aos poucos, ela vai desvendando o lugar, suas peculiaridades e algumas residentes singulares, como a misteriosa jovem Carlita.

Claro que não demora até Margaret topar com o dedinho do pé bem na quina da conspiração pró-Anticristo.

O roteiro, de Stevenson, Tim Smith e Keith Thomas, toca em alguns pontos bem relevantes, como a opressão sistêmica e a luta pela autonomia das mulheres sobre seus corpos. Em termos de terror per se, não deixa muito espaço para ambiguidades. Aliás, não deixa nenhum. Com exceção, talvez, de uma reviravolta que dá pra antever a quilômetros de distância. O casting, em contrapartida, foi bastante feliz.

Nell Tiger Free – que, apesar do nome, não é nativa americana, mas inglesa – faz uma protagonista genuína e cativante. A bela espanhola Maria Caballero, mesmo com pouco tempo de tela, se destaca como a colega de quarto de Margaret. O mesmo para a adolescente italiana Nicole Sorace, como a introspectiva Carlita. Do lado dos veteranos, o grande Bill Nighy empresta altivez e confiabilidade ao Cardeal Lawrence, bem como Ralph Ineson no papel do renegado Padre Brennan, com o auxílio extra do seu vozeirão estrondoso (não é à toa que será o Galactus!). E a Irmã Silva está muito bem representada pela nossa Sônia Braga, cravo & canela.

O único desagravo foi a mera ponta reservada à Charles Dance, o eterno Tywin Lannister. Devia ser proibido por lei um ator desse porte aparecer menos de duas horas por filme.

Também desceu esquisita a participação-relâmpago da atriz aussie Ishtar Currie-Wilson como a insana Irmã Anjelica. Os trailers e imagens promocionais venderam a sua expressão assustadora como se fosse o carro-chefe do filme. E passa bem longe disso.


A bem da verdade, o plano dos servos do cramulhão é digno dos vilões mais camp do 007. E se a trama não tem muitos trunfos, o jeito foi fazer algumas rendições aos clássicos. As (poucas) mortes do filme são transposições quase literais de cenas famosas do A Profecia original. Planos e enquadramentos se embriagam em cenas icônicas de O Exorcista e O Bebê de Rosemary – impressão reforçada pela fotografia obsessivamente simétrica de Aaron Morton nas tomadas fechadas em contraponto com a pegada mais solta de Stevenson nas externas.

Eventualmente, a coisa cruza o limite e abraça o plágio descarado: a impressionante e visceral cena de possessão na reta final foi reeditada da famosa performance de Isabelle Adjani em Possessão, filme dirigido pelo cineasta polonês Andrzej Żuławski em 1981. É ver – e comparar – pra crer.

* o curioso é a presença do Sam Neill em Possessão no mesmo ano em que interpretou o Damien adulto em A Profecia III. De certa forma, fecha-se aqui um ciclo bastardo. Vade retro, fio de Satanás!

Pode parecer estúpido (e é), mas o grande momento de A Primeira Profecia é o final. Para os adeptos do filme de 1976, como este que vos rascunha, é recompensador em vários aspectos. Não posso elaborar aqui por questões de spoiler, mas dou minha palavra que vale a pena.

Ao menos 66,6% de satisfação garantida.

4 comentários:

rock4you disse...

Salve Zombie!!!

Cara sinceramente fui assistir esse filme no cinema devido as boas criticas e por ser um genero totalmente carente de bons filmes. A primeira cena do filme (que era para ser impactante) já me incomodou mas era um incomodo ao qual vc tinha esperanças . Resumidamente : as cenas de terror são incomodas dignas de riso (clichê é apelido), roteiro idem , só não levantei e fui embora da sessão pois achava que tinha ao menos uma cena ao qual valeria 5 reais (coisa q não teve) entrou na minha lista de piores filmes que ví no cinema . O único ponto positivo (SPOILER ALERT) é só o "trecho" do roteiro da igreja católica criar o próprio anticristo para pessoas voltarem a ter fé e voltarem a congregação. Se pudesse desvelo e ter meu tempo de volta para ver outro filme eu trocaria rs. Caso tiver tempo e quiser emita sua opinião sobre furiosa que para mim é o melhor filme do ano (por enquanto) e talvez (naõ sei pelo calor do momento) é um dos melhores filmes de ação de todos os tempos.

doggma disse...

Fala í, Rockaço!

Nem queira conhecer minha lista de piores filmes que vi no cinema. Basta dizer que Street Fighter está nela, mas não é o pior...

Ainda verei Furiosa. A recepção foi bem divisiva, hein? Mais uma.

SPOILER DE A 1ª PROFECIA [trilha satânica do Jerry Goldsmith aqui]

Fora as atuações, o que mais curti no filme foi a seriedade e o compromisso com o mythos. E o modo como a conclusão se amarra ao início do original, com Damien sendo mencionado e a foto do Gregory Peck, me deu arrepios. E uma puta vontade de rever o clássico. De novo.

Também gostei do outro final, com o Padre Brennan reencontrando as três filhas do demo. A situação delas é ferradíssima. E deixa uma storyline paralela interessante para ser explorada.

Abraço!

Sandro Cavallote disse...

Maninho, bota Servant na lista. Mesma atriz desse aí.

doggma disse...

Vi lá na ficha corrida dela, mas não tinha referências. Já pra lista!