Agosto de 1994 foi um divisor de águas. Naquele mês, saía a polêmica
Green Lantern #54. Ao mesmo tempo em que a edição choca os leitores com a morte brutal de Alex DeWitt, a namoradinha do Lanterna Verde Kyle Rayner, também dá uma nova carreira à cabeleireira Gail Simone. Seu website
Women in Refrigerators – título sem rodeios e
autoexplicativo – leva o fato um pouquinho pra fora da bolha nerd e rende contatos com figuras-chave da indústria. Alçada a roteirista, Gail tem breves passagens pelo gibi dos
Simpsons e pela Marvel, até que, em 2003, assina com aquela mesma
DC Comics da historinha brutal, onde está até hoje.
Claro que a DC não é a única editora historicamente misógina e sexista. A Marvel, tradicionalmente mais progressista, também tem sua cota de
esqueletos femininos no armário. Mas é na DC que, por algum motivo, a passada da boiada sempre manteve o cardio em dia. Um exemplo é que logo após cooptar Gail Simone, a distinta publicou a minissérie
Crise de Identidade, de Brad Meltzer, com toda a
sorte de
atrocidades às quais a personagem Sue Dibny foi submetida.
Quando o assunto é idade de consentimento, então, a coisa vira mato. O que
queriam fazer com a Mary Marvel foi além de qualquer sensatez. E que o diga o amor-estranho-amor de
Slade Wilson e Dana Markov, Hal Jordan e sua
bimbo de 13 anos Arisia Rrab (mais tarde, embaraçosamente "consertada" por Geoff Johns para
240 anos!) e prefiro nem mencionar o
Terry Long, pelo amor de Nabokov.
A raiz disso tudo parece remontar a uma época em que o escoteirão Superman flertava com suas jovens primas
Supergirl e
Poderosa como se fosse o sugar daddy das galáxias. Aquele agosto de 1994 pode ser sido um divisor de águas para Gail Simone, mas para a DC, era uma terça-feira qualquer.
São algumas viagens que ficaram após a leitura de
As Fúrias Femininas, mini em 6 partes publicada em 2019 lá fora e compilada pela
Panini em abril de 2021 aqui dentro. E minhas expectativas com o quadrinho eram o exato oposto desse papo. Com a guarda de elite de
Darkseid em pose épica e ameaçadora na capa de Joëlle Jones, imaginei uma aventura de ação militar-espacial 2000 ADística, curta, grossa e divertida. Mas o roteiro da escritora, diretora e
indie rocker Cecil Castellucci prefere explorar a cena pelos bastidores. O que, a priori, é uma ideia ótima e, ao mesmo tempo, perigosamente desafiadora.
Poucos terrenos das HQs são tão férteis para analogias ao preconceito de gênero (ou a
qualquer preconceito) e à luta pelas causas femininas (ou a
qualquer causa) quanto o inferno totalitário de
Apokolips. Em particular, as
Fúrias Femininas parece que nasceram para isso. A abordagem de Castellucci fica evidente no logo nas primeiras páginas, com a
Vovó Bondade supervisionando a 1ª formação da equipe:
Auralie,
Lashina,
Bernadeth,
Harriet Louca e
Grande Barda. Ah, esses nomes.
Enquanto conclui anos de treinamentos mortais, Bondade relembra seus próprios perrengues em nome da ascensão social e profissional – incluindo éons de humilhações e gaslighting de seus camaradas até a submissão sexual para o chefão de pedra chapiscada.
Paradoxalmente, as Fúrias eram, de certa forma, "protegidas" pelo treino e condicionamento extremos. Quando são oficialmente apresentadas, passam a conhecer o mundo-cão-machista no qual
Vovó Bondade se graduou.
Dentre elas, a maior vítima é Auralie, alvo constante de assédio e estupros por um oficial da alta cúpula. Apesar das tentativas de trazer alguma justiça para seu caso, Auralie só encontra indiferença por parte de Bondade e repúdio das demais Fúrias. Sororidade passa longe das hostes apokoliptianas. A única que desenvolve alguma empatia (tardia) é Barda, já a um passo de seu relacionamento com o
Senhor Milagre e do passaporte para a liberdade na Terra.
Castellucci teve bastante cuidado com o momentum de sua trama. Tudo está muito bem encaixado na cronologia sem influir nos eventos clássicos. A HQ começa com o assassinato da mãe de Darkseid, Heggra, a mando do próprio. Depois, Scott Free inicia sua parceria com o líder rebelde
Himon. Até a sofrida Auralie tem o mesmo destino de sua encarnação original, em
Mister Miracle #9, de maio de 1972. Detalhes extras bacanudos que mostram que a roteirista leu todo o
Quarto Mundo de Jack Kirby com atenção e mucho gusto.
A coisa só patina um pouco nas elipses da narrativa, nos entrequadros. Alguns cortes são muito truncados, fora que algumas ideias chafurdam no absurdo, como a sequência envolvendo Auralie, Barda e um cadáver desovado num cometa (!). O desenlace é puro nonsense da Era de Prata.
A arte da paulistana
Adriana Melo é eficiente e esteticamente agradável – sua "jovem" Vovó Bondade é qualquer coisa de espetacular e implora por arcos com missões solo. A exceção são as cenas de luta, confusas como as de um gibi do StormWatch ou do Justice (
lembra disso,
Vicente?). A artista também evita aquelas panorâmicas industriais/tecnomedievais de Apokolips, um personagem à parte das sagas Kirbyanas. Se conscientemente ou não, vai saber. Mas ela, com
absoluta certeza, teria cacife.
No final, surpreende ver que a chamadinha de capa
"A Revolução no Quarto Mundo!" não fica apenas na promessa. A tal revolução,
furiosa e feminina, realmente acontece, embora destoe da cronologia jogando tudo pra conta de um provável
Elseworld. Uma ousadia que não consegue suprir totalmente a sua (enorme) ambição. Não foi dessa vez.
Deixemos isso, ainda, com a Martha Washington de Frank Miller e com a Halo Jones de Alan Moore. Mas valeu a tentativa.