quarta-feira, 29 de setembro de 2004

Operação Resgate:
Os primos italianos de Evil Dead...



Com raras exceções, o cinema de horror está atravessando uma fase que varia do ruim à pura inexistência. O subgênero conhecido como splatter/gore então, nem se fala. Até velhos mestres, como John Carpenter parecem ter perdido o tino pra coisa (vide o fraco Fantasmas de Marte). O que se vê hoje é o estilo subvencionado ao esquemão pop (Freddy X Jason, O Filho de Chucky), e com poucos representantes genuínos (Madrugada dos Mortos, Extermínio), fora os descendentes natimortos da franquia Pânico, que teimam em não desaparecer de vez. Os tempos são outros, e dificilmente os admiradores de experiências mais radicais irão se satisfazer com alguma obra que não seja do circuito independente ou que não tenha saído do catálogo casca-grossa da Troma Films.

A década de 80 hoje parece pertencer à uma outra era. Nesses 10 anos foram produzidos alguns marcos da carnificina cinematográfica. Eram filmes em que até os revezes técnicos (roteiros esbucarados, defeitos especiais de ponta) se convertiam em pontos positivos. Aliás, justamente por causa deles é que esses filmes ficavam tão divertidos. Da esbórnia total (A Volta dos Mortos-Vivos, Fome Animal), passando pelo ultra-referencial (Evil Dead, Re-Animator), às produções caprichadas (A Hora do Pesadelo, Força Sinistra, O Enigma do Outro Mundo), e atingindo o nível de perfeição (Evil Dead II).

Entre uma coisa e outra, Demons (Demoni, Itália, 1985).


Apesar do jeitão hardcore, Demons vem de linhagem nobre. Seu diretor, Lamberto Bava, é filho de Mario Bava, um dos maiores diretores do gênero na Itália, senão o maior (são dele clássicos cult como Black Sabbath e Black Sunday - A Máscara de Satã, entre muitos outros). Isso sem contar a experiência adquirida através da convivência e trabalhos ao lado de mestres como Dario Argento e Lucio Fulci.

Mesmo sem alcançar o brilhantismo desses diretores, Lamberto sabe apertar onde dói. Ele sempre larga o incauto espectador sozinho, à mercê das sensações mais desconfortantes e situações mais apavorantes. Não é nada assim "putz, que legal essa sanguinolência!", muito pelo contrário. Por vezes, sua narrativa chega a incomodar mesmo. É como ser trancado em um quarto escuro com aqueles saquinhos de brinquedo que produzem uma risadinha sinistra (tá, mas imagina isso na mesma proporção de quando você era criança). Claro que esses rasgos de genialidade doentia terminam onde a diversão sangrenta e irresponsável começa. Aí é se largar e curtir, pois é nesse ponto que Demons oferece um verdadeiro banquete.


Como que seguindo uma espécie de tradição, Demons mantém algumas regras do gênero splatter. Entre eles está uma tonelada perguntas sem resposta (grande... ou melhor, uma enorme parte do filme é assim), personagens hesitantes, cheios de problemas pessoais (para serem esquecidos logo que o couro comer), guerreiros se revelando entre cidadãos comuns (paus e pedras, old style), erros de continuidade, e seqüências maravilhosas de escatologia pesada e violência gratuita, que não exercem qualquer influência na história.


A história é um mix do açougue infernal de Evil Dead com o padrão "Living Dead" da trilogia clássica de George A. Romero. Sempre com um forte ar de conspiração, mas nunca confirmado (lembre-se: sem perguntas), o filme começa com a gracinha Cheryl (Natasha Hovey), desafiando a Lei de Murphy ao desembarcar numa estação de metrô mais sinistra que o castelo do Conde Drácula. Chamariz de serial-killers, logo ela se vê perseguida por um cara esquisitão usando uma máscara prateada (Michele Soavi - um total workaholic, e já explico por quê). Jogando fora uma bela chance de assassinato cruel, o misterioso sujeito apenas entrega um flyer para a inauguração de um cinema. Claro que ela vai (essas meninas) e, mui amiga, leva junto a sua colega Kathy (Paola Cozzo).

No sagüão do cinema, conhecemos os aperitivos do dia: os onipresentes casaizinhos apaixonados, o cafetão machoman Tony (Bobby Rhodes, figuraça) mais duas acompanhantes, um senhor cego (no cinema...) acompanhado de sua esposa "amiga da garotada", os amigos George (Urbano Barberini) e Ken (Karl Zinny), mais uns canapés coadjuvantes.


Em Demons tudo parece ser a origem do Mal. Ao mesmo tempo que isso causa uma certa confusão (afinal, precisamos de explicações!), é, de certa forma, uma boa idéia. Não há nada mais assustador do que não sabermos a natureza do Mal que enfrentamos. Dessa forma, inventamos automaticamente dezenas de interpretações esdrúxulas, apenas e tão somente para nos sentirmos mais confortáveis diante de uma situação difícil e fora do nosso controle. E o pior é que sabemos disso, pois não temos a menor idéia da verdadeira face do inimigo. Então, nesse caso, menos é mais.

Vamos lá... A misteriosa figura de máscara prateada é quem aparentemente arma toda a cilada, mas ele não dá mais as caras, só retornando ao final do filme. No sagüão do cinema, há uma estátua de um guerreiro em cima de uma moto, segurando uma espada samurai em uma mão e uma estranha máscara na outra. Uma das gurias do cafetão pega a máscara para brincar, e acaba se arranhando com ela. Claro que nesse vacilo ela foi "infectada" e logo se transforma em uma criatura demoníaca (aaêêê).


Como se não bastasse, o filme que está sendo exibido na telona é amaldiçoado. No mesmo estilo documentário-realista de Holocausto Canibal (referência mais pra cá: A Bruxa de Blair), o filme retrata um grupo de amigos sem-noção explorando a tumba perdida de Nostradamus (!) no cu da noite (!!), e, claro, despertando um Mal milenar no processo. Daí, esse Mal "vaza" da telona para o cinema.

Por incrível que pareça, esse subterfúgio acabou se revelando muito funcional dentro da narrativa. À medida que os acontecimentos vão ficando mais macabros no filme que está sendo exibido, as mesmas situações vão se formando nas dependências do cinema. Chega uma hora em que os eventos dos "dois lados" acabam transcorrendo quase em paralelo, culminando na incrível (e nojenta) cena de transformação da prostituta. Sem dúvida, um belo exercício de metalinguagem, e mérito do roteiro, que foi escrito pelo Dario Argento, Franco Ferrini e Dardano Sacchetti, além do próprio Bava.

Outra coisa: um dos rapazes que participam do filme que está sendo exibido (ô troço complicado de escrever) é interpretado pelo mesmo Michele Soavi, o cara esquisitão da máscara prateada. Além disso, ele também é o diretor de 2ª unidade do filme! É ou não é um workaholic? :D


Na platéia, uma das espectadoras se contamina só de ver o filme (sem perguntas...). Indisposta, ela vai ao banheiro e protagoniza uma das cenas mais putrefactas já filmadas. Envolve estouros de bolhas cheias de pus, jorros de sangue podre e enormes dentes pontiagudos rasgando gengivas de fora a fora. Logo, temos nosso 1º demon, pronto para se multiplicar. O modo de contágio lembra muito o dos mortos-vivos mais lambões: qualquer mordida, arranhão ou baforada já é o suficiente. A semelhança acaba por aí. Os demons são ainda mais rápidos que a rapaziada de Extermínio (os atuais campeões morto-vivolímpicos), e não têm aquela fraqueza da cabeça (hehe). A seqüência em que uma legião de demons avança pelos corredores escuros do cinema - com aqueles olhos luminosos - é antológica, ficou muito boa mesmo. Tanto que virou o cartaz oficial.

Logo, a turba entra em pânico, mas o cinema está totalmente selado. É isso aí... daí pra frente, com exceção de uma externa no final, a ação se passa inteira dentro do cinema! Entre um clima pesadão e claustrofóbico, e soluções inovadoras (pra época), o resultado é o já tradicional vâmu-quebrá-tudo com direito a esquartejamentos, decapitações e pancadaria estilo briga de torcida organizada. No final apocalíptico, a influência de Romero chega a ser palpável.


Na esteira do sucesso cult do primeiro filme, Demons 2 foi produzido logo no ano seguinte, em 1986. Lamberto Bava assina a direção e o roteiro novamente é dividido com Argento, Ferrini e Sachetti. Quase toda a equipe original retorna, inclusive alguns atores de destaque, como o carne-de-pescoço Bobby Rhodes.

Demons 2 inicia uma nova história do zero, apenas baseada nos aspectos do primeiro filme, sem, no entanto, ter relação com ele (da mesma forma que Evil Dead II está para o primeiro). Na verdade, o que houve foi uma reedição do filme original, onde só mudaram a ambientação e alguns outros detalhes. E, seguindo à risca o manual de continuações de filmes de terror, Demons 2 traz o triplo de sanguinolência e carnificina por frame rodado. Talvez, pela assumida zoação em cima dos clichês estabelecidos no primeiro filme, a continuação traz ainda menos explicações (!) e seqüências de podreira pra lá de exageradas (mesmo para os padrões gore).


Sai o cinema, entra um prédio residencial ultra-sofisticado. Sai o filme amaldiçoado rolando na telona, entra um filme amaldiçoado rolando na telinha (!). Trata-se de um documentário exibido num canal de TV, sobre uma cidade em quarentena, totalmente devastada após um holocausto epidêmico. Ao que parece, trata-se da mesma cidade onde ocorreram os eventos do filme anterior, mas isso, é claro, fica a cargo da sua imaginação (uma constante...).

O menu dessa vez é o professor de musculação Hank (Bobby Rhodes, machão e impagável), o casal George (David Knight) e a grávida Hannah (Nancy Brilli), a menina Ingrid (Asia Argento, gatíssima hoje em dia, e filha do Dario), o guri Tommy (Davide Marotta), a prostituta Mary (Virginia Bryant) e a aniversariante Sally Day (Coralina Cataldi), sem contar os condôminos com o aluguel atrasado.

Sally surta em sua festa de aniversário (só porque convidaram o seu ex), se tranca no quarto e começa a assistir o tal filme amaldiçoado. O improvável acontece quando um dos demônios do filme começa a atravessar a tela da televisão, ao melhor estilo Samara Morgan, de O Chamado. Em questão de segundos, Sally é demonizada também (o processo continua o mesmo), e a festinha de aniversário ganha contornos aterradores. A seqüência de acontecimentos é mais ou menos essa aí:






Os demons sofreram um upgrade. Seu sangue agora é ácido (!!), igualzinho à certos ETs babões. Além disso, o sangue também passou a ser ultra-contagioso, bastando encostar na vítima para infectá-la (putz!).

O pega-pra-capar é inevitável e como toda desgraça é pouca (e forçação de barra também!), o sistema de segurança automatizado do edifício entra em pane e tranca todas as saídas. Rapidamente, o prédio inteiro é varrido por um furacão demoníaco, que, em poucos instantes, deixa pouquíssimos humanos não infectados. Num esforço derradeiro, uma parte dos sobreviventes desce à garagem subterrânea, na esperança de encontrar uma saída. Acabam cercados por um exército infernal e, a partir daí, o lugar se torna palco de uma porradaria generalizada.



Demons 2 é bastante irregular. Deliciosamente irregular. Mas, mesmo assim, irregular. Existem buracos no roteiro na mesma proporção de uma rodovia federal brasileira, e há uma profusão de cenas sem qualquer influência na história. O roteiro também chega ao final ao troncos e barrancos. Antes da metade do filme, a quantidade de demons é tão grande, que quase não existem mais humanos pro filme acompanhar.

Igual ao primeiro filme, também há várias pistas e questões não esclarecidas ou exploradas devidamente. Na mais inquietante delas, um casal consegue escapar para um prédio vizinho, e lá encontra um estúdio de TV abandonado. Uma coincidência dessas não poderia ser à toa. Será que o filme que deu origem à barbárie estava sendo exibido nas TVs do mundo inteiro ou apenas naquele edifício? Houve uma conspiração por trás de tudo? E se houve, quem foi o fdp? Como eu já avisei... não pergunte.


A série Demons pertence à uma época em que os filmes de terror eram feitos para assustar, não para vender a sua própria marca. Que se dane o sucesso comercial (mas se vier é de bom grado), o barato era brincar de monstro e sair por aí pregando susto. A partir do momento em que o dinheiro começou a entrar, a coisa foi ficando mais séria, e acabou-se a mística.

Lamberto Bava ainda tentou invocar os demons mais uma vez, com o obscuraço La Casa dell'Orco, de 1989. Esse filme não tem qualquer relação com os dois anteriores, a não ser pelo título que recebeu no mercado de VHS: Demons III: The Ogre (dessa vez, os demons saem dos pesadelos de crianças!). Daí em diante, Lamberto caiu no ostracismo cinematográfico, limitando-se a dirigir e produzir filmes e séries para TV.

Mas a derradeira só foi acontecer anos depois. O mestre das trevas Dario Argento (Suspiria, Inferno, Trauma, etcetcetc...) começou a dirigir filmes policiais meia-boca, Sam Raimi (Evils Deads) foi ganhar na loteria com o mega-pop Homem-Aranha, e Peter Jackson (Fome Animal) virou um diretor respeitável, com três superproduções no currículo e um exército de carecas dourados na mão.

Terminou aí uma fase memorável e brilhante no cinema de horror gore.


Antes que eu me esqueça, recomendo esta matéria sobre Demons, e esta outra, sobre Demons 2, ambas escritas por Felipe M. Guerra, um cara que conhece do riscado. Logo depois, tire a poeira do videocassete e alugue os dois Demons, numa tacada só. Vai por mim, eles estarão lá te esperando, no cantinho menos visado da locadora. Diversão garantida.


Na trilha: muito gótico e psychobilly... Meteors, The Cramps, The Faith and The Muse, The Nymphs, algumas do The Cranes... e uma coletânea matadora do The Misfits, fase 77/83.

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