"Pior que ontem, melhor que amanhã."
Lembro quando bolei esse status para o meu perfil do Blogger. Era uma brincadeira com o ritmo insano de trabalho na época aliado às ressacas infindas, além de ter algo para botar no campo de cadastro. Uma piada interna, boba e fugaz como só uma pode ser. E com uma ponta de otimismo incorrigível. Aquilo foi se ressignificando pelos anos seguintes, ganhando contornos mais abrangentes. E nunca teve tanta relevância quantos nos últimos... um, dois... três para quatro anos. Isso graças ao Bozo e sua milícia de minions psicopatas? Não apenas, mas ao zeitgeist extremista, obscurantista e negacionista que varre o planeta neste exato momento e do qual ele serve como o michê mais extravagante e mercenário. É um poço de estupidez e intolerância que se mostrou, até aqui, sem fundo, num eterno loop de decepção e incredulidade com a espécie humana.
Daí a relevância da frase, mesmo após uns bons 17 anos. E daí o fato de Não Olhe para Cima ser um dos filmes do ano para mim. Espero sinceramente que daqui a novos 17 anos ninguém mais lembre sobre o quê ele realmente tratava. Sempre o otimista...
E vamos a algumas coisas legais de 2021!
Discos favoritos
O Gojira chega ao seu sétimo álbum mantendo uma discografia invejável. Fortitude traz todas as fases da banda francesa na bagagem —dos primórdios technical death metal, às trips progressivas passando pelos flertes com o groove metal e o post-metal— e ainda aponta para novos caminhos. Ativistas ambientais e fãs de carteirinha do Sepultura, também não deixaram passar a influência fortíssima do grupo brasileiro circa Chaos A.D.-Roots. La perfection.
Quebrando um pouco a regra sacrossanta do ZdO de só selecionar originais (e quem está contando?), é impossível não propagar aos quatro ventos o evangelho de A Better Dystopia, maravilhoso disco de covers do Monster Magnet. Dave Wyndorf & cia lapidam 12 diamantes brutos do rock espacial e da psicodelia pesada setentista, mais a intro imitando o cultuado DJ americano Dave Diamond. Como é de se esperar, o repertório é obscuro-vantablack (eu mesmo só conhecia o Hawkwind e o Dust), resgatando músicas de grupos abissais como The Scientists, Poobah, Jerusalem, Josephus e lá vai porão. Porrada na orelha seguida de lambida em cartelinha de ácido.
E que tal um disco que abre deslavadamente ABBA (que também retornou em 2021) e emenda numa sequência pop-folk dançante irresistível de ouvir sem esboçar um sorrisão besta do início ao fim? Além dos ícones suecos, Magic Mirror tem reverências a Fleetwood Mac, Steely Dan, Seals & Crofts e toda aquela cena de sexo, drogas & tapeçaria chique de Laurel Canyon. É o 2º álbum da cantora e compositora californiana Pearl Charles e já estou apaixonado.
Ministry virou banda de véio. A bem da verdade, o improvável sexagenário Al Jourgensen já tinha queimado toda a gasosa na trilogia anti-Bush, há quinze anos. Na vida e no som, ele tirou o pé do acelerador e das brincadeiras/experimentações no estúdio. Moral Hygiene é o reflexo disso. O disco faz até referências aos renegados tempos de synthpop, o que achei duca. Mas o feeling "Search and Destroy" —que, inclusive, ganha cover garageira no disco— segue intacto. Fora que os associados da vez são afiadíssimos (o veterano tecladista John Bechdel, o guitarrista/baixista Cesar Soto e o baterista Roy Mayorga). Ministry 2021 não é metal industrial, é rockão industrial. E bebo a isso.
Com Vulture Prince, Arooj Aftab chega ao seu 3º álbum nas graças do público e da crítica vanguardista/hipster/artê —até o Obama adora e elegeu uma faixa do disco como uma de suas prediletas do ano. Se isso tudo resultar em fama & grana para esta cantora e compositora paquistanesa radicada no Brooklyn, fechou. O álbum é uma perfeita coleção de gemas blue-jazz, soul e neo-sufi (releitura moderna das canções de louvor dos Sufis) embalada por sua voz misteriosa e absolutamente hipnotizante. E, caramba, um som danado de bom para relaxar depois de um duro dia nas masmorras.
7 discos de estúdio, 2 ao vivo, 5 EPs, uma caralhada de singles e só fui conhecer o Blackberry Smoke agora. Entrei no 2º tempo, mas entrei bem: You Hear Georgia é um primor de country/southern rock com uma pegada de rock jam setentista —Neil Young é o meu pastor e nenhuma banda influenciada por ele me faltará! Pegar a estrada com esse som deve ser o bicho.
Diva electropop, a sobrevivente Ashley Nicolette Frangipane —mais conhecida como Halsey— teve uma sacada de gente grande (e esperta) para seu projeto filme-disco If I Can't Have Love, I Want Power: descolou nada menos que a dupla Trent Reznor e Atticus Ross para a produção. O resultado, além de um pop industrial bonito, bem feito & formoso, tem aquela atmosfera nervosa, tensa e cheia de detalhezinhos arranjísticos que elevam a experiência a um outro patamar sensorial. Não por acaso, é um álbum conceitual sobre gravidez e trabalho de parto. Vai, macho!
Afrique Victime é novo álbum de Mdou Moctar, o melhor guitarrista tuareg do planeta (mal aí, Bombino). Já é seu quinto disco, o 1º pela Matador Records e o som continua... matador¹. Sei, péssima, mas é a síntese mais próxima de seu blues de deserto elétrico, barulhentíssimo e vazando grooves tribais. Mais uma vez, Mdou... mandou.²
Oriundos de formações viscerais e esporrentas, Bobby Gillespie (Primal Scream) e Jehnny Beth (ex-Savages) surpreendem com uma parceria inusitada e o bendito fruto dessa união. Em Utopian Ashes, o duo se engaja numa espécie de country soul pop de nuances soturnas e emocionais (pensa num Cowboy Junkies versão sofrência). E é bom demais. Trilha ideal para afogar as mágoas num litrão de uísque e para ajudar a atravessar aquela ressaca monstro.
Mais stoner metal? Mais stoner metal. Só que o som massivo do Green Lung se destaca fácil na multidão. O quinteto de Londres consegue soar pesado —e isso vai muito além de marretadas insistentes e dos volumes da produção, é mais na forma de encaixe da rifferama + harmonia + cozinha mesmo. Black Harvest é apenas o 2º disco do grupo e trafega com desenvoltura pelo heavy metal velhusco, lisergia e passagens sorumbáticas de occult rock. Isso sem contar as deliciosas intervenções do synthzinho Moog, mostrando que ouviram Spiritual Beggars com atenção. Nem ia comentar nada, mas a verdade é que esses caras têm potencial para voos ainda mais altos...
Em seu debut autointitulado, o guitarrista e singer-songwriter Carl “Buffalo” Nichols faz a ponte definitiva entre blues e americana. Em canções predominantemente solo, o artista de apenas 30 anos brilha com uma habilidade sobrenatural na guitarra acústica e um lirismo quase ancestral nos vocais, remetendo a velhos blueseiros de um Delta qualquer da década de 20. E tudo com uma elegância absurda. Um discaço.
Ainda me impressiono como o monstruoso Carcass, regurgitado dos grotões mais pútridos do death/grind, foi alçado ao status de artesão-mor do metal extremo melódico. Ninguém injeta melodias nas artérias death como o trio britânico —com as instituições Jeff Walker e Bill Steer à frente. Talvez a experiência gore/splatter/tripas-a-rodo dos primeiros discos tenha feito deles cirurgiões musicais miraculosos. Se for isso mesmo, então Torn Arteries é o mais novo certificado de renovação do CRM dos caras. Mas o que não esperava mesmo era um coração vegano estampando a capa. Ué?!
Há tempos o som do Mastodon não é mais tão carne de pescoço. Até gostava de dar uma reclamadinha tipo "ah, na época do Blood Mountain e do Crack the Skye é que era bom" e truezices quetais. Falácia das brabas. O quarteto da Georgia é curtido em musicalidade pura, nunca hesitou em fazer o que desse na telha e sempre soou foda pra caralho. Isso posto, o impecável Hushed and Grim obedece a diretriz básica do grupo de aliar neurônios com headbanging desenfreado num contexto de rock progressivo. Mic drop.
Já comentei sobre o trampo arqueológico sensacional do selo Grapefruit Recors, divisão da Cherry Red Records. A série I'm a Freak Baby inclusive já foi laureada com um portentoso Zombie de Ouro! E esse 3º volume da antologia mantém a nota máxima no quesito qualidade e quase obscuridade dos grupos selecionados —embora aqui já compareçam medalhões como Yardbirds, UFO, Mott the Hopple, Budgie, Hawkwind, Thin Lizzy, Pink Fairies, Trapeze, Free, Procol Harum e até Nazareth, Uriah Heep e o Deep Purple! Mas é CD triplo e, embora alguns ainda possam identificar o Geordie (antiga banda de um certo Brian Johnson), o mesmo dificilmente se aplica a nomes como Stray, Head Machine, Distant Jim, Fuzzy Duck, Sam Gopal, Episode Six, T2, Curtis Knights Zeus, The Deviants, Bram Stoker e mais uma patota subterrânea do proto-heavy sessentista/setentista. É festa do iníco ao fim. Pra ouvir no volume 11.
Mais uma quebra (dupla) dos regulamentos ZdOísticos: não só um disco ao vivo, como também de uma apresentação de setembro de 1979. Mas preferia ir preso a não registrar esse aqui. The Legendary 1979 No Nukes Concerts —parte de um concerto-filme no Madison Square Garden com vários artistas em protesto ao uso de energia nuclear— é uma performance de pura excelência. Bruce Springsteen e a E Street Band tocaram o céu nesta apresentação. "Badlands", "The River", "The Promised Land", "Born to Run", "Thunder Road", "Jungleland"... só cavalos de batalha, um atrás do outro, o Chefão possuído e o público completamente entregue. 2021 é bico: esse é fácil um dos meus discos preferidos de todos os tempos.
Menções honrosas:
Now and Then, do Paul Stanley's Soul Station
Blue Weekend, do Wolf Alice
Black to the Future, do Sons of Kemet
Hardware, de Billy F Gibbons
Portas, da Marisa Monte
Blood, da Juliana Hatfield
The Eternal Rocks Beneath, da Katherine Priddy
Texis, do Sleigh Bells
Ritual Divination, do Here Lies Man
Rocket to Kingston, mashup de Bob Marley com Ramones do divertido projeto Bobby Ramone
What Could Go Wrong?, do redivivo Skatenigs
Filme do ano
Mal dá pra acreditar que Shiva Baby é o longa de estreia de Emma Seligman. Aliás, a história foi readaptada/esticada de um curta homônimo que a diretora e roteirista canadense filmou em 2018. Na trama, a fantástica Rachel Sennott (recém-saída de uma bomba) vive uma jovem judia que faz uns programas para pagar uns boletos e que retorna à sua antiga vizinhança para um shivá, período de luto similar àqueles velórios de americano (onde só comem e comem). Ela chega lá, com o lugar abarrotado de famílias "tradicionais", recalcadas e fofoqueiras —seus pais inclusos— sem saber que entre os presentes estão uma ex-namorada de colégio, ainda gamada por ela, e um sugar-daddy-que-talvez-seja-algo-mais. O que acontece a partir daí é uma verdadeira montanha/roleta russa com uma das trilhas sonoras mais inteligentes e sádicas dos últimos tempos. Impressionante como um filme que é, em essência, uma comédia, consegue ser tenso e claustrofóbico como um genuíno filme de terror. Um espetáculo de construção, narrativa e interpretação em menos de 80 minutos. Brilhante.
(Minis-) Série do ano
The North Water, da BBC Two. A minissérie em cinco capítulos adaptada do livro homônimo é daquelas que demoram para dar baixa na memória recente. A história e a narrativa são tão cruas quanto possível: em 1859, um baleeiro britânico com uma tripulação filha da puta sai para caçar no Ártico. Só que o capitão tem outros planos. A produção é suntuosa e a atmosfera é densa como um muro de concreto. Não é para todos, mas quem curtiu Taboo ou a 1ª temporada de The Terror, ao menos, vai se esbaldar. O elenco é fabuloso e Colin Farrell está irreconhecível, numa de suas atuações mais intrigantes e assustadoras. Ele e, principalmente, Jack O'Connell brilham. Este último, inclusive, lembra um jovem Jared Harris, em entonação e interpretação. Minisserieaça.
Doc do ano
The Beatles: Get Back, de Peter Jackson, eclipsou tudo e mais um pouco. Já li incontáveis vezes sobre as gravações tumultuadas do que viria a ser o disco Let It Be, o canto do cisne do Fab Four. Mas acompanhar com detalhes o intenso brainstorming musical, os choques de personalidades, a pressão interna, a estranha e simbiótica relação John-Yoko, o impacto que a chegada do músico Billy Preston teve no grupo, além de assistir em "tempo real" a gênese de megaclássicos como "I've Got a Feeling", "I Me Mine", "The Long and Winding Road", "Don't Let Me Down" e, lógico, "Get Back" é outra conversa. Em algo como 8 horas de corte final, já é bem mais do que um documentário, é uma experiência audiovisual. E foi uma das mais incríveis que tive nesta vida.
Gibi do ano
Não gibi, mas gibis. Ou checklist de gibis? Seja como for, a valente Editora Mino vem publicando as obras de Ed Brubaker e Sean Phillips, uma das melhores parcerias dos quadrinhos em todos os tempos, corrigindo anos de injustiça editorial. Finalmente. Merece todo o crédito por romper a inércia (má vontade?) das grandes editoras e por lançar esses quadrinhos do jeito certo. Parabéns, obrigado e, por favor, continuem.
Relançamento do ano
Ah, Ken Parker, Ken Parker... Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo são os putos mais geniais da raça. Graças à Mythos Editora, agora posso colocar minhas patas nesse quadrinho com trabalho editorial decente e preço não escandaloso. A jornada será longa (50 volumes), mas altamente compensadora.
E é isso!
2021 não foi fácil pra ninguém. Como cantava o Lennon em "I've Got a Feeling" - "Everybody had a hard year..." e aí logo emendava com "Everybody saw the sunshine..." Esperança é o que sempre fica, afinal. No mais, um excelente 2022².
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