sexta-feira, 29 de abril de 2022

Nós perdemos outro herói


Neal Adams
(1941 - 2022)

1985 foi o ano. Em Batman #10, o Morcego passava um dobrado com o assustador Ra's al Ghul enquanto se envolvia até o pescoço (e acima) com Talia, a filha do vilão. Tudo muito mais visceral do que qualquer coisa que já havia lido nos gibis.

Alguns meses depois, a régua subia até a estratosfera, com Superamigos #4 e o célebre arco do Lanterna Verde e Arqueiro Verde combatendo o tráfico de drogas. Aquele tapa do velho Ollie no Ricardito acertava em cheio na alma do leitor.

O primeiro Neal Adams a gente nunca esquece. E nem o segundo.

Adams foi a cara e o espírito da Era de Bronze. Influência primordial (e estoque para tracing) de gerações de artistas. Alguns dos melhores momentos do Batman se deram por suas mãos — e também um dos piores. Só pra atestar que ele era humano, afinal.

Como bom veterano, seu ritmo de produção era absurdo. Seja nas décadas dentro da indústria (iniciou a carreira na Archie Comics em 1959!) ou fora dela. Sempre será um gênio e uma inspiração para a vida. Mesmo para quem não vive de quadrinhos.

Em 2020, ao se despedir do amigo e o melhor parceiro de trabalho Dennis O'Neil, escreveu:

“Denny O’Neil mudou os quadrinhos para melhor. Talvez seja hora de reaprendermos algumas daquelas lições.”


E o mesmo pode ser dito sobre ele. Foi um privilégio e tanto estar aqui no tempo de vida dessa dupla...

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Louco como um guerreiro da Luz que luta contra as Trevas


Em meados de 1989, Leandro Luigi Del Manto, então editor de quadrinhos na Abril, foi convidado para uma conversa no escritório de Eduardo Macedo, na época, diretor comercial na editora Globo. Não houve muito rodeio — "estamos abrindo uma nova redação de quadrinhos aqui na Globo e precisamos de alguém que cuide do material não infantil. Você tem interesse?". E veio a pergunta de 1 milhão: "o que vocês estão pretendendo?"

Após um incisivo "olha, vou abrir o jogo, mas não pode sair daqui", Macedo tira de uma gaveta pilhas e mais pilhas de HQs. Os olhos de Del Manto quase saltaram das órbitas: estavam ali Akira, Sandman, V de Vingança, Orquídea Negra, Demônio da Mão de Vidro, Marada: A Mulher-Lobo, a minissérie do Pantera Negra e vários outros títulos. A negociação conclui com um "quanto vou ganhar e onde é que eu assino?"

É uma das minhas histórias favoritas dos bastidores do mercado nacional de quadrinhos.

Essa investida da Globo reformulada foi, de certa forma, um divisor de águas. Não foi a gênese do quadrinho adulto no Brasil, mas, sem dúvida, modernizou e expandiu o conceito para um modelo editorial que perdura até hoje.

Logo foram chegando títulos como Dreadstar, Moonshadow e O Último Americano. Todos da Epic Comics, subdivisão da Marvel lançada pelo editor Jim Shooter e que operou entre 1982 e 1996. Filhote da memorável Epic Illustrated, o selo se destacava por oferecer aos quadrinistas liberdade total nas histórias, além da almejada propriedade sobre suas criações — um tremendo arrojo em se tratando da Casa das Ideias.

E o 1º título Epic publicado pela Globo foi A Guerra de Luz e Trevas, estreia da parceria do escritor Tom Veitch com o desenhista Cam Kennedy.


A história — uma saga aventuresca nos moldes clássicos — é uma jornada pelos gêneros da guerra, da fantasia e da ficção científica sob a ótica bastante peculiar de Veitch. A HQ já abre com duas linhas temporais simultâneas, com o veterano Lazarus Jones visitando um memorial de guerra enquanto relembra sua última e trágica missão no Vietnã, quando uma emboscada vitimou sua unidade e ainda lhe arrancou as duas pernas. Tomado pelo transtorno do estresse pós-traumático com ênfase na síndrome do sobrevivente, Laz é incapaz de viver o tal sonho americano pelo qual viu tantos serem sacrificados.

As coisas mudam após um grave acidente de carro. Mais uma vez ele sobrevive, porém em coma profundo num leito de hospital. Preso em um estado espiritual intermediário, Laz é confrontado por um ser sobrenatural que o apresenta ao Portal Negro, um mundo localizado no sistema estelar Abraxas. Lá, é travada uma guerra milenar entre as forças da Luz e das Trevas. Uma guerra para onde são cooptadas todas as almas dos soldados mortos em combate — justamente onde estão seus saudosos irmãos de armas Slaw, Huff e Capitão Engle desde que desencarnaram naquele fatídico dia no Vietnã.

O Portal Negro é um posto avançado da Galáxia da Luz, sendo o território de maior disputa entre as duas forças. Do lado da Luz, está Urumm, também chamado de A Fonte. Do lado das Trevas, está o Senhor Oculto. Suas forças militares são lideradas pelo tirânico Lorde Na, cujos poderes de conversão deram origem aos Deadsiders, um gigantesco exército de guerreiros demoníacos espalhado por quase toda a galáxia.

É neste contexto básico — mas com desdobramentos bastante intrincados — que Laz e a autointitulada Gangue da Luz buscam a diferença que significará a vitória (ou a derrota) decisiva. Se é que aquilo tudo é mesmo real, no final das contas...


Sobre os desdobramentos intrincados, não é força de expressão. Veitch criou um universo vasto e riquíssimo, com várias soluções inusitadas para evitar o lugar-comum.

Um exemplo é no início, quando Laz chega ao Portal Negro e vê seus velhos amigos combatendo Deadsiders com indumentárias e armamentos remetendo aos séculos 16 e 17. As circunstâncias naquela galáxia eram ainda mais primitivas, quando houve um salto tecnológico a partir do ano 1519 terrestre. Não por acaso, o ano do falecimento de ninguém menos que Leonardo da Vinci. Tendo trabalhado como arquiteto e engenheiro militar para os Bórgia, Leonardo também projetou várias fortalezas e instrumentos bélicos, o que lhe rendeu uma passagem só de ida para aquela guerra.

O polímata italiano foi o primeiro a explorar o potencial dos Menteps, criaturas azuladas ligadas diretamente à Fonte. Além de um grande alcance telepático, esses seres têm o poder de levitar e acelerar qualquer objeto à velocidade da luz. Assim, eles passam a usar essa capacidade nas imensas belonaves de pedra utilizadas pelos soldados da Galáxia da Luz.

Contudo, mesmo sendo um pioneiro e visionário, Leonardo ainda era limitado à perspectiva de seu tempo.

Dessa forma, naquele continuum (ou, como Cam Kennedy gosta de dizer, naquele "plano temporal alternativo"), toda a evolução tecnológica e cultural estagnou por volta do ano 1700 em padrões de tempo terrestres.


O Grande Encontro: Leonardo da Vinci e Nikola Tesla esquadrinhando os rumos da guerra

Outro gênio a aportar na Galáxia da Luz foi o revolucionário inventor e engenheiro Nikola Tesla, falecido em 1943. Em Abraxas, o controverso cientista enfrenta o protecionismo quase dogmático ao redor das criações defasadas de Leonardo. Pressionado pelo Conselho da Conferência Galáctica, ele passa a trabalhar numa "Máquina de Destruição" (vulgo seu-2º-Raio-da-Morte). Enquanto isso, Nicholas Tesla, seu neto (ficcional), inadvertidamente desenvolve na Terra um dispositivo capaz de abrir um portal para aquela dimensão. E essa é só a ponta de Taa II.

A Guerra de Luz e Trevas é uma convergência das influências literárias com as experiências pessoais de Tom Veitch. Antes de se tornar escritor e quadrinista, ele viveu na clausura como monge beneditino por alguns anos. Suas convicções espirituais sempre estiveram presentes em suas obras e ressoaram ainda mais intensamente nesta HQ. Além dos generosos apêndices entre os capítulos e das referências espertas, Veitch inseriu versículos de uma "Bíblia Mentep", fornecendo mais pistas sobre as origens daquele universo.

Na trama, essa característica é explorada até ao ponto em que os mundos físico e espiritual passam a interagir nos dois sentidos. Fora todo o processo cármico dos espíritos de soldados humanos servindo como reforços de guerra num mundo espiritual, em dado momento, as forças da Luz e das Trevas são atualizadas com o arsenal bélico da Terra dos dias atuais. Nada mais natural: se há algo em que somos muito bons é em espalhar sofrimento e destruição em larga escala.

Uma premissa que parece ter servido de base para o filme Anjos Rebeldes (The Prophecy, 1995), em que anjos disputam a alma de um recém-falecido coronel veterano da Guerra da Coreia. Uma alma tão vil e cruel que é considerada pelos seres celestiais como a "alma mais sombria da Terra" e que pode decidir os rumos de uma guerra civil no Paraíso.

Além da espiritualidade, outra grande influência de Veitch era Tolkien. Enquanto Urumm/A Fonte é uma entidade ou força análoga ao Deus cristão, Lorde Na e o Senhor Oculto são análogos a Saruman e Sauron, de O Senhor dos Anéis — e os Deadsiders, swipes fáceis dos Uruk-Hai.

Mas Veitch não ficava apenas no plano abstrato e construía metáforas tristemente atuais ao mundo real. Mesmo com todo o poderio bélico à disposição, Lorde Na e seus minions excursionam pelas províncias sitiadas proferindo um discurso de ódio, violência e morte. Tudo isso enquanto "converte" populações vulneráveis em apoiadores-zumbis, exarcebando as táticas fascistas de controle como um típico autocrata das trevas.

É uma aula o modo como Veitch consegue abordar as questões mais espinhudas da discussão política sem sair do campo da alegoria.


A arte de Campbell "Cam" Kennedy é estonteante. O escocês passou a década de 1980 imerso nas linhas de produção da 2000 AD, especialmente nos títulos Judge Dredd e Rogue Trooper. Em A Guerra de Luz e Trevas, seu traço bebia na fonte de mestres como Gil Kane (na pegada detalhista), Sergio Toppi (vestimentas, expressões culturais multiétnicas) e Walt Simonson (construtos diversos, como naves, edificações, armas). Dinamismo, páginas duplas e takes panorâmicos das batalhas de tirar o fôlego.

A palheta de cores curtida em tons oitentistas se intermediava com um naipe de técnicas, belíssimas passagens de pinturas a óleo e aquareladas — reflexo da aversão do artista pelas colorizações digitais, prática que já se popularizava na época. Kennedy, que sempre detestou ser arte-finalizado por terceiros, fez tudo. O homem não era brincadeira.

Veitch e Kennedy sabiam o que tinham em mãos. E, mais importante, souberam vender o projeto. O próprio Archie Goodwin ficou tão fascinado pelo conceito que ele próprio se encarregou da edição da série ao invés de delegar para outro.

George Lucas gostava tanto de A Guerra de Luz e Trevas que entregou nas mãos de Tom Veitch a nova fase do Universo Expandido de Star Wars. O escritor, que não era bobo, tratou de convocar o amigo Cam Kennedy para repetir a parceria na nova empreitada — e seu grande fruto até hoje é bastante celebrado e discutido entre os fãs: a trilogia Império Negro.


Uma das duplas mais memoráveis das HQs

A conclusão sugestiva confirma uma sensação presente durante toda a leitura: as ideias de Veitch para aquele universo eram grandiosas demais para uma simples minissérie. Ele definitivamente não tinha terminado com o universo de A Guerra de Luz e Trevas.

Mas isso é algo que nunca mais saberemos.

Referências:
Entrevista com Tom Veitch
Entrevista com Cam Kennedy
Artigo na Amazing Heroes

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Hasta la vista, Angel Villa!

GUARDANDO O LÁPIS NA GAVETA | O cartunista de 65 anos recebeu um diagnóstico de afasia, doença neurodegenerativa que...

Publicado por Folha de S.Paulo em Quarta-feira, 20 de abril de 2022

Quando era guri, haviam as revistas que lia matando aula e as revistas que lia escondido dos meus pais. A única que me levava a fazer as duas coisas era a Chiclete com Banana com a sagrada trindade Angeli-Glauco-Laerte & grande elenco underground. Era o meu segredo mais bem guardado do mundo.

Esse triste diagnóstico também trouxe um diagnóstico para todos nós, leitores de longa data: estamos velhos. E, ao contrário do que dizia a máxima dos Stones, não, o tempo não está do nosso lado.

O mundo já está mais careta. E muito menos subversivo.

Obrigado por tudo e força, Angeli!


Ps: só frisando que ele não vai parar, não. Mas se fosse bancário...

Hoje nosso querido Angeli anunciou que encerra sua colaboração com a @folhadespaulo, após quase 50 anos no jornal. Ele...

Publicado por Laerte Coutinho em Quarta-feira, 20 de abril de 2022

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Guns, Love and Thunder N' Roses

Detratores e amantes de Thor: Ragnarok, treimei-vos e regozijai-vos: aportou o trailer de Thor: Amor e Trovão.


É como receber uma transfusão do sangue do Taika Waititi chapado de LSD. Tem o aspecto da fanfarronice, incorreção e otimismo inabalável, que, misturado ao hino dos gunners (e esse deve ter sido o cheque mais gordo que Slash recebe desde 1996), dá uma sensação meio James Gunn à coisa toda. Finalmente vemos a Natalie Portman como a poseur Thor Jane Foster e ainda não dá pra ver o Christian Bale soterrado sob quilos de látex como o temível Gorr, mas a referência ao Carniceiro dos Deuses comparece, em alto e bom som.

Oito de julho (?) estarei lá. Tudo pela pipoca & guaraná.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Catarse do Catarse

Adoro a ideia de poder colaborar, de fazer parte daquilo de algum modo, de ver minha humilde graça impressa nos agradecimentos (tolos, ainda dominarei o mundo!), de acompanhar todos os trâmites até colocar as mãos naquele quadrinho autoral espetacular demais para as editoras mundanas, que só operam afundadas em planilhas e gráficos —e antecipadamente, no melhor estilo de exclusividade cooperativa.

Mas cada visita à lista de produções em andamento me lembra porque esse nicho editorial se proliferou no Catarse em primeiro lugar. Meu histórico de apoios já virou um limbo quadrinhístico. Brrrr.


O projeto confirmado mais antigo é o sci fi Bonelliano Legs Weaver, pela Graphite Editora. Entrega prevista para novembro de 2020. Geralmente, essas previsões são bastante inacuradas, mas isso já é ridículo. O pior é que as edições da Graphite são caprichadas. Quem viu o projeto anterior deles, o colossal Nathan Never Gigante - Futuro Duplo, ficou de queixo caído. Na seção de Novidades, o último comunicado (de fevereiro) dá conta de problemas envolvendo troca de gráfica e falta do papel escolhido no mercado. Pela nova "previsão", uma nova cotação será feita em junho/julho para, talvez, entrar lá no final da fila de impressão. Pena.

Já a editora Lorentz conseguiu entregar o segundo volume de Alvar Mayor em janeiro (quatro meses após a previsão fornecida), mas nada ainda do terceiro volume. A normalmente ligeira Tai Editora, da simpática Taína Lauck, também tem estendido seus prazos —vide Milady 3000, estimada para novembro de 2021— sem, no entanto, diminuir o ritmo de lançamentos. Pelo contrário.

No geral, tenho notado uma profusão-seguida-de-acúmulo nos lançamentos de HQs via Catarse. Se for pensar, é praticamente um empréstimo a perder de vista e sem juros. E isso me lembra algumas picaretagens da velha guarda. O que, felizmente, não vi acontecer na plataforma. Ainda.

Há tempos o homenzinho do Departamento de Aquisições vem me pressionando. E, não me leve a mal, será difícil. Mas parei. A partir de agora, só material disponível em lojinha virtual, ao alcance da mão de fechar o carrinho. E tenho dito.

Ok, ok... só vou apoiar mais o combão Um Mundo de Impressões – Os 70 anos da Editora RGE/Globo - A Noite em que a Marvel fez o Mundo Chorar. Aí, é a saideira. Não tem esse dedo me dói.

E tenho dito.

sexta-feira, 1 de abril de 2022

No mundo do Lua


Cavaleiro da Lua, episódio um. So far, so good. E pelos motivos que a maioria deve detestar.

Primeiro, a incógnita que era a Marvel urbana produzida pela Disney+. Não é mais incógnita, a companhia não trabalha isso, a classificação é PG-13. Pelo menos no Da Lua. As cenas de pancadaria/matança —e teriam várias nesta estreia— são omitidas simplesmente mantendo o foco em uma das personalidades do vigilante. Só na volta do "apagão" é que vemos o estrago que ele fez ou a encrenca ainda maior em que se meteu. O que temos são montagens frenéticas que remetem a um Ilya Naishuller (Hardcore Henry) ou a um Guy Ritchie on crack. Na moral? Prefiro isso a outra coreografia de luta fofinha, como foi quase tudo da Marvel até aqui, ou mais um rip-off da clássica cena do corredor de Oldboy.

Segundo, não me irritei com a profunda alteração de sua origem —relendo minha gloriosa Almanaque Premiere Marvel #3 não tive dúvidas da quantidade de schnapps que Doug Moench matou enquanto escrevia aquilo—e que a Lua caia na minha cabeça se Oscar Isaac contracenando com Ethan Hawke não é um tempo de qualidade.

Os efeitos fantasmagóricos e a transformação do protagonista são despirocantes. Nunca tinha ouvido falar no cineasta egípcio Mohamed Diab, mas, diabos, parece mesmo que ele sabe onde o galo cantou.

Claro que nem tudo são flores sob a luz do Lua: Khonshu com trejeito e voz de Cookie Monster/Venom do cinema foi dose. Mumm-Ra deve estar rolando no sarcófago.

Que venham os próximos cinco capítulos (chuto que serão dois para cada personalidade, desfiando a mesma história sob diferentes perspectivas). E, mais importante ainda, que venham os próximos capítulos de Halo, cujos problemas só afetam os gamers. Viva!