domingo, 30 de junho de 2024

Homens de boa fortuna


Em 1995, Neil Gaiman foi convidado pelo The Comics Journal para entrevistar os irmãos Jaime e Gilbert Hernandez. E conversaram muito sobre rock & roll, filmes, mulheres e, lógico, sobre os quadrinhos dos três e dos outros. A coisa começa com o ex-jornalista entrevistando seus ídolos, mas logo o fluxo se inverte (“Virou ‘a entrevista de Neil Gaiman’”) e, em seguida, emenda num papo delicioso de pub enfumaçado fora de qualquer script. É sensacional.

A Veneta – a casa atual dos irmãos Hernandez no Brasil – resgatou esse momento ímpar em outubro do ano passado numa bela edição física. Que, advinha, perdi na época. Felizmente, a editora disponibilizou esse material em seu site pelo módico preço de R$ 0,00.

"Comprei" há uma semana e já reli três vezes. Recomendadíssimo. Melhor custo-benefício de todos.

Pra fechar, cacei uma imagem registrando o encontro do trio por toda parte e em todos os perfis (incluindo o da Carol Kovinick, fotógrafa da entrevista e esposa do Gilbert), sem sucesso. Então, vai uma foto do Neil lendo o Jaime, retirada do perfil dele no Facebook.


Gaiman com cara de “como é que esse chicano caladão tem essas mulheres incríveis vivendo na cabeça dele?”

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Nosferatu de Henrik Galeen

Nosferatu parece trazer um Robert Eggers diferente de tudo o que ele mostrou até aqui. Ou talvez seja o trailer aplicando um corta-luz em quem esperava drops atmosféricos de slow burn.


Produção suntuosa, tomadas épicas, cenografia lindamente gótica, trilha histriônica na veia da velha Hammer. Um grande exercício de estilo, como Drácula de Bram Stoker foi há 32 anos.

Plus, as filmagens foram na República Tcheca, como convém, o tétrico Conde Orlok é personificado pelo Bill Skarsgård e o lançamento será em pleno Natal. Tudo muito promissor.

O clássico expressionista alemão está em boas mãos garras. Mas nada que ameace o reinado da melhor releitura de Nosferatu já feita.

Irônico ver o Willem Dafoe retornando aos domínios nosferatescos, só que desta vez do outro lado das presas...

domingo, 23 de junho de 2024

Departamento de antigos Devaneios


Realizado, falido e felizaço-aço aqui nas catacumbas. Só queria espalhar isso aos quatro ventos.

Câmbio, desligo.

Ps: como diria o Columbo, só mais uma coisa: FINALMENTE.

quinta-feira, 20 de junho de 2024

A águia voou


Donald McNichol Sutherland
(1935 - 2024)

Se foi o Donald Sutherland. Ficam a lenda, a obra fantástica, o senso de humor inabalável e a cara de pau inacreditável que exibia nas entrevistas e aparições públicas. Sutherland não era só grande, era gigante como a vida.

A eulogia escrita por seu filho Kiefer, além de poderosa e tocante, cunha uma sentença que define a carreira do homem:
Nunca se deixou intimidar por um papel, seja bom, mal ou feio.
Ele interpretou de tudo mesmo. Em 65 anos de profissão, nunca se deixou apanhar pelo typecasting. Nada mais foi preciso, apenas o seu incondicional amor à arte.

Não que seja algo que já não faça há eras, mas a hora é de homenagens e de umas Sessões Donald Sutherland. Não podem faltar os hits Inverno de Sangue em Veneza, Klute - O Passado Condena, Casanova de Fellini, A Águia Pousou, Os Doze Condenados, M*A*S*H, O Buraco da Agulha e, lógico, Os Invasores de Corpos. Só filmaços, impressionante. E o melhor de tudo, não são nem a ponta do iceberg.

Thank you for everything, Mr. Sutherland

A Saga do Surfista Cromado


Houve um tempo em que perfumarias em gibis eram raridade. Coisas como hot stamp dourado/metalizado, reserva de verniz, capas em acetato e afins passavam longe das mentes (e orçamentos) das editoras. Quando vinham, eram como um merecido afago no fiel leitor. Mas mesmo com todo o deslumbre e boa vontade, foi difícil identificar o que era aquela massaroca cromada à frente do Thanos na capa de Superaventuras Marvel #153, da Abril Jovem (março/1995). Não reconheci o Surfista Prateado nem de 1ª, nem de 2ª. E ainda hoje tenho que me lembrar do que se trata quando olho pra ela.

É triste a comparação com a The Silver Surfer #50 original (junho/1991). A gringa tinha uma capa laminada com relevo simples-pero-eficiente em cima da arte do Ron Lim. Já a nossa queridona e saudosa SAM, até trazia um relevinho, mas usava aquele filme com efeito holográfico, o BOPP (polipropileno biorientado). Isso deixou a textura do Surfista muito uniforme e que, depois, foi "melhorada" com uns retoques/riscos feitos pelos artistas da redação. E ainda ficou caolho.

De todo modo, fazer os recortes no logo e no corner box do gibi deve ter sido um teste de paciência e perseverança. O Jotapê já comentou algumas vezes como era complicado fazer qualquer brincadeira nas edições, pois o departamento de arte e as gráficas simplesmente não acompanhavam. Deve ter sido uma loucura nos bastidores para acertar essa arte de capa e com aquela tiragem ainda enorme para os padrões atuais. O Claudio Carina, então editor da SAM (hoje, diretor da Wordplay Serviços de Tradução), deve lembrar bem desse gibi. Mesmo que na forma de TEPT.

Sendo justo, mesmo lá fora o projeto não foi exatamente uma uva. Na prensagem, choveram erros de laminação – todos superfaturados como $ouvenirs, lógico. Esses caras são mestres na arte da limonada.

Tenho um fraco por esses mimos. Durante um período, eles saíram bastante por aqui. Minha massaveística Super-Homem Versus Apocalypse: A Revanche reluz num canto da estante até hoje. E me arrependo de ter passado pra frente as edições de O Reino do Amanhã, da Abril.

Nada que se compare à enxurrada de capas metalizadas publicadas lá fora, contudo.



Claro, existe sempre a possibilidade de meter a mão nas HQs antigas e aplicar aquele do it yourself maroto.


Mas aí já é nível Nerdmaster Ômega.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Entre morcegos e lobos


Que leitura. Batman: Gritos na Noite é considerada uma das histórias mais pesadas do Cruzado Encapuzado. E, adivinha, é pesada mesmo. Nem foi necessário recorrer ao Coringa, ao Duas-Caras, ao Espantalho ou qualquer residente do Arkham. Só precisou do elemento humano, no seu mais errático, imperfeito e trágico. Figurinhas tão triviais quanto o colega de trabalho, o vizinho que acena, o parente próximo. E isso é assustador.

O roteiro é do lendário Archie Goodwin, que co-argumentou a premissa com o artista Scott Hampton (Lúcifer, Deuses Americanos). A trama gira em torno de chacinas brutais de famílias de Gotham City, uma nova e poderosa droga que está agitando as ruas e casos de abuso infantil. Temas sombrios por natureza, nunca abordados de forma tão nevrálgica num quadrinho mainstream. Eu, pelo menos, nunca vi.

Lá fora, Gritos na Noite saiu em outubro de 1992. Foi publicada aqui pouco depois, pela Abril, em dezembro de 1993. E foi publicada novamente pela Panini no finzinho do ano passado, exatos 30 anos depois. Acompanhei essa cronologia in loco. Velho é pouco. Mas meu 1º contato não foi dos melhores: na época, achei a história arrastada, a arte muito escura e um tom geral de "quadrinho adulto" que não apeteciam aquele leitor espinhento viúvo de Heróis da TV. Pérolas aos porcos, é o que dizem.

Precisei desses 30 anos – mais seis meses até tirar do plástico (as páginas do bendito couché já começavam a colar) – para adquirir o cabedal necessário para apreciar a graphic com propriedade. Trata-se de uma obra sui generis, perturbadora, atual e necessária.


A arte aquarelada e suja de Hampton é o coração da HQ. O artista trabalha em diferentes tons escuros conferindo uma sensação opressiva, pesarosa e desesperadora à narrativa. É incrível como uma história que investiga a escuridão da alma humana tenha acertado tanto na escolha de seu artista.

A Gotham de Scott Hampton é apavorante. Parece situada n'alguma dimensão fantasmagórica, trevosa e obscura, como o Outro Mundo (Silent Hill) ou o Mundo Invertido (Stranger Things). Ou, melhor ainda, no Umbral.

Como ele mesmo chegou a brincar:
“No que me diz respeito, ninguém em Gotham City tem nada superior a uma lâmpada de 20 watts.”

Definição melhor, impossível.

O contraste entre as cenas escuras e as cenas claras também é espetacular. Literalmente uma supernova direto no olho logo após um longo blecaute.

É uma leitura que demanda tempo e atenção. Não foram poucas as vezes em que precisei acostumar a retina até capturar tudo o que estava acontecendo num quadro.


Assim como não foram poucas as vezes em que achei que havia algo e era apenas a transparência de algum balão na página de trás. Duh.

Sabiamente, Hampton evita qualquer traço de virtuosismo, o que cortaria a sua fina sintonia com a trama. Ainda assim, em vários momentos, acaba lembrando uma cruza dos mestres John J Muth e Richard Corben. O que não é nada mal para um autodidata confesso.

Mesmo esse evidente compromisso com o espírito da história rende cenas que são um convite a uma bela moldura.


Bons tempos em que isso era mais valorizado

Nunca vi um Bruce Wayne no papel do playboy-filantropo-bon vivant tão soturno, tão pouco à vontade, tão Batman. E Jim Gordon, ainda imundo das ruas em suas primeiras horas como Comissário, é o protagonista moral aqui. Complexo, obstinado, falho e, novamente, humano.

Gritos na Noite justifica o título. É um thriller psicológico barra pesadíssima que bem poderia ter sido a fonte de consultas para David Fincher em Se7en (1995). Especialmente fortes são as duas sequências das páginas 51–55, inesperadas para um comic book e difíceis de ler, nauseando o leitor com uma impotência que remete aos próprios personagens. É um quadrinho que te traga para dentro, gostando ou não.

A conclusão, inevitavelmente pós-traumática, sugere até certa natureza elseworld, à Piada Mortal. Algo para refletir.

Difícil saber onde estavam as mentes dos quadrinistas quando escreveram a história. Hampton costuma dizer que é uma HQ muito pessoal, seja lá o que isso quer dizer.

E o veterano Archie Goodwin, falecido em 1998, trabalhou nas revistas Creepy e Eerie na década de 1960, foi editor da Epic Illustrated e, depois, do selo Epic, na Marvel, por dez anos. Estava acostumado com temáticas hardcore e mundo cão, mas nada assim.

A única coisa que sei é que o Batman era seu personagem predileto da DC. E talvez isso tenha sido o suficiente.

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Americano genioso

Indulgente, não diria. Celebratório, com certeza.


O trailer de Frank Miller: American Genius traz uma vibração que lembra bastante a condescendência de Stan Lee, da Disney+. E a presença do bom, velho e malandrão Stanley Lieber deixa a coisa ainda mais sintomática. Infelizmente, o documentário deve fazer vista grossa ao aspecto mais polêmico e fascinante de sua carreira: o Frank Miller pôs-11/9.

Ao que tudo indica, o tom é 100% chapa-branca e não traz menções às suas epifanias de extrema direita, às tentativas pernetas de redenção e muito menos ao injusto revisionismo negativo que sua obra tem experimentado nos últimos anos. São tópicos de ouro para qualquer documentarista que almeja fomentar o debate e a reflexão. Pelo jeito, não será desta vez. A direção é da estreante Silenn Thomas, produtora executiva de 300 e Sin City: A Dama Fatal e que, por acaso, também é a CEO da Frank Miller Ink, empresa do quadrinista. Pois é.

Curiosamente, a premiere oficial foi no Rome Film Festival, em 2021. Contudo, só agora descolou uma estreia pela rede Cinemark (dos EUA, claro), prevista para 10 de junho. Em seguida, o doc será disponibilizado on demand.

A lista de convivas foi generosa e trouxe de Neal Adams e Zack Snyder a Jim Lee e Robert Rodriguez. E também me pegou de supetão com a indefectível Jessica "Nancy Callahan" Alba ressurgindo e tecendo juras de amor aos gibis do Frank. Melhor que isso, só se aparecesse de cowgirl e recriasse a clássica cena no Kadie's.

O doc é sobre o Miller gênio, mas podia ser também sobre o Miller genioso. Renderia demais em tela. Não vai rolar. E claro que verei e me divertirei mesmo assim. Acima de tudo, é melhor um tributo em vida do que a opção. Ele merece.

terça-feira, 4 de junho de 2024

O diabo mora ao lado


Diferente da maioria dos prequels, A Primeira Profecia (The First Omen, 2024) teve à disposição um farto material sugerido para elaborar. O clássico que Richard Donner legou em 1976 tinha planos mais urgentes e ambiciosos, mas deixou algumas migalhas pelo caminho. O remake de 2006 – excomungado pela crítica e sucesso estrondoso de público – se limitou a atualizar a história. Já a subestimada série de 2016 foi uma sequência alternativa do original. Ficou com a cineasta Arkasha Stevenson a missão de triangular as raízes do mal em orfanatos católicos e cidadezinhas da velha Roma.

E essa nova investida entrega. Ainda não é aquela mega turnê por ruínas e cemitérios etruscos, mas o resultado é favorável. E promissor.

Stevenson é estreante em longas, mas já exibe uma assinatura cinemática bem particular. Sua câmera é atenta, quase documental, provavelmente influência dos seus tempos de fotojornalista no Los Angeles Times. Com habilidade, ela faz questão de capturar as pessoas ao fundo e a atmosfera das locações, elevando quase ao nível dos protagonistas. Isso confere uma sensação de imersão e tensão muito interessante e pouquíssimo hollywoodiana. O que é um baita elogio.

Essa opção de perspectiva mais, digamos, popularesca remete ao prólogo de O Exorcista, com o saudoso Max von Sydow vagando pelas ruas de Mosul, Iraque. Recortes do dia a dia do cidadão comum que sugerem certo realismo mágico, ainda que aliado a uma presença sinistra e invisível. E isso faz todo o sentido do mundo. Afinal, antes de falar do Anticristo é preciso falar do mundo e das pessoas que vivem nele.

Preparar o palco é essencial. Ou, no caso, fazer a cama.


A história começa com dois padres discutindo uma suposta conspiração dentro da igreja. Corta para a Roma de 1971, onde a jovem noviça Margaret é enviada para trabalhar num orfanato e, talvez, ser ordenada freira – tudo em meio a protestos de estudantes, trabalhadores e militantes de esquerda (opa!). Margaret é conduzida pelo Cardeal Lawrence até o orfanato, que é dirigido pela austera Irmã Silva. Aos poucos, ela vai desvendando o lugar, suas peculiaridades e algumas residentes singulares, como a misteriosa jovem Carlita.

Claro que não demora até Margaret topar com o dedinho do pé bem na quina da conspiração pró-Anticristo.

O roteiro, de Stevenson, Tim Smith e Keith Thomas, toca em alguns pontos bem relevantes, como a opressão sistêmica e a luta pela autonomia das mulheres sobre seus corpos. Em termos de terror per se, não deixa muito espaço para ambiguidades. Aliás, não deixa nenhum. Com exceção, talvez, de uma reviravolta que dá pra antever a quilômetros de distância. O casting, em contrapartida, foi bastante feliz.

Nell Tiger Free – que, apesar do nome, não é nativa americana, mas inglesa – faz uma protagonista genuína e cativante. A bela espanhola Maria Caballero, mesmo com pouco tempo de tela, se destaca como a colega de quarto de Margaret. O mesmo para a adolescente italiana Nicole Sorace, como a introspectiva Carlita. Do lado dos veteranos, o grande Bill Nighy empresta altivez e confiabilidade ao Cardeal Lawrence, bem como Ralph Ineson no papel do renegado Padre Brennan, com o auxílio extra do seu vozeirão estrondoso (não é à toa que será o Galactus!). E a Irmã Silva está muito bem representada pela nossa Sônia Braga, cravo & canela.

O único desagravo foi a mera ponta reservada à Charles Dance, o eterno Tywin Lannister. Devia ser proibido por lei um ator desse porte aparecer menos de duas horas por filme.

Também desceu esquisita a participação-relâmpago da atriz aussie Ishtar Currie-Wilson como a insana Irmã Anjelica. Os trailers e imagens promocionais venderam a sua expressão assustadora como se fosse o carro-chefe do filme. E passa bem longe disso.


A bem da verdade, o plano dos servos do cramulhão é digno dos vilões mais camp do 007. E se a trama não tem muitos trunfos, o jeito foi fazer algumas rendições aos clássicos. As (poucas) mortes do filme são transposições quase literais de cenas famosas do A Profecia original. Planos e enquadramentos se embriagam em cenas icônicas de O Exorcista e O Bebê de Rosemary – impressão reforçada pela fotografia obsessivamente simétrica de Aaron Morton nas tomadas fechadas em contraponto com a pegada mais solta de Stevenson nas externas.

Eventualmente, a coisa cruza o limite e abraça o plágio descarado: a impressionante e visceral cena de possessão na reta final foi reeditada da famosa performance de Isabelle Adjani em Possessão, filme dirigido pelo cineasta polonês Andrzej Żuławski em 1981. É ver – e comparar – pra crer.

* o curioso é a presença do Sam Neill em Possessão no mesmo ano em que interpretou o Damien adulto em A Profecia III. De certa forma, fecha-se aqui um ciclo bastardo. Vade retro, fio de Satanás!

Pode parecer estúpido (e é), mas o grande momento de A Primeira Profecia é o final. Para os adeptos do filme de 1976, como este que vos rascunha, é recompensador em vários aspectos. Não posso elaborar aqui por questões de spoiler, mas dou minha palavra que vale a pena.

Ao menos 66,6% de satisfação garantida.