domingo, 12 de junho de 2005

SAMARA FEZ ESCOLA COM VIRGINIA WOOLF



Eu sou um cara que, às vezes, sem motivo algum aparente, toma tamanha antipatia por alguns filmes que impeço-me de assistir algumas obras realmente interessantes. Quando isto acontece, só uma força sobrenatural é capaz de me arrancar da letargia e escolher o filme na locadora (claro... porque quando o preconceito vem, não vejo no cinema por nada neste mundo). As Horas (The Hours, 2003) é um destes casos; não sei se a sinopse simplesmente me afastava, se era minha implicância com a Meryl "arroz de festa" Streep ou porque não consigo entender que grande trabalho de maquiagem no nariz da Nicole Kidman é este que a inteligentsia tanto elogiou. Fala sério... é só um nariz!

A força sobrenatural da vez foi uma promoção "pague dois e leve três" que, associada à inexistência de outros títulos não vistos e interessantes, permitiu-me a oportunidade de usufruir daquela história (vamos combinar algo daqui para frente... nunca mais vou escrever "estória" – primeiro porque acho feio bagarái e segundo porque a norma usual já aceita o "história" como uma generalização de ambos os casos). Aviso que daqui para a frente podem haver alguns spoilers, ou não, dependendo do ponto de vista. Continue por conta e risco.



Morreu e não sabe


As Horas conta a história de 3 mulheres em tempos diferentes, mas com alguma coisa em comum. Que nem Free. Uma destas mulheres é Virginia Woolf, a Nicole nariguda que até manteve-se pegável (caso alguém discorde, deve lembrar que estou convalescente e com uma ordem médica de abstinência sexual por 3 meses, mais do que motivo para chamar urubu de meu louro), escritora PMD responsável por Mrs Dalloway e que não imaginava como esta obra teria influência na vida de duas gerações surgidas quase meio século depois. Pelo menos segundo o livro que inspirou o roteiro.

Stephen Daltry (de Billy Elliot) dirige um filme que nos apresenta diversas abordagens interessantes das relações humanas. O livro de Virginia não deixa de ser uma obra pseudo-auto-biográfica, já que a todo momento vemos Nicole Woolf entretida com frases e fases de sua "heroína" (com e sem trocadilho, por favor) e a forma como aquilo reflete-se na sua própria história. A vida de Virginia Kidman seria digna de um filme por si só – certamente rivalizaria com Réquiem para um Sonho no quesito "vou cortar os pulsos depois da projeção", e mesmo assim interessante – mas a forma como o roteiro nos mostra a absorção de seus pensamentos por Julianne Moore anos depois, bem como o impacto do simples apelido na psiquê fragmentada e dependente da personagem de Meryl Streep eleva à décima potência a percepção dos reflexos de uma mente niilista contestadora (redundante não?) no seu meio.




Nicole está ótima no papel, passando a amargura de uma personagem cheia de cicatrizes psicológicas com maestria (tá bom... o nariz a deixa muito diferente, assumo). Uma mulher inteligente, ácida, incapaz de sentir-se à vontade no mundo, intrigada/conformada com o conceito de morte, e deixada de lado por todos exceto o marido. Os momentos que passa no processo criativo de seu livro reforçam a idéia de auto-reflexão ao mostrar com que dedicação procura por cada frase. Mereceu cada grama do dourado careca que ganhou.

Esta dedicação sugere a inequívoca intensidade na construção do texto, claramente percebida na reação de uma Eva Brown (Julianne Moore) destroçada, incerta de sua sexualidade e dos conceitos sociais que deve seguir, mecânica até na forma de demonstrar apreço pelo marido e filho (falta pouco dar um tapa na cabeça do moleque e gritar Pedala Robinho!).



Pedala Robinho!!


Aham... continuando: As decisões que a personagem de Julianne toma durante o filme estilhaçam a personalidade do filho que, pelo que vemos, passou boa parte da vida sentindo-se menos que um ser humano. Incompreendido e incapaz de compreender o que há à sua volta, traduzindo esta confusão em seu próprio livro. Pessoas assim contrariam o dito popular que prega a união entre opostos e só conseguem ser orbitadas por pessoas igualmente auto-destrutivas. Normalmente um dos dois passa a ser muleta do outro. E é aí que entra a personagem de Meryl Streep. Em um momento de fragilidade na juventude ouviu o apelido que parece ter desmoronado com suas convicções, fazendo com que o livro de Woolf tome um aspecto maldito, destruidor, quase como uma chamada telefônica do filme O Chamado. A diferença é que Samara Morgan matava em 7 dias. Mrs Dalloway mata na hora, sendo que a pessoa continua neste plano, vagando para lá e para cá esperando o momento em que poderá deixar a vida de zumbi e tentar de novo em outra encarnação, enquanto "as horas" ainda precisam ser vividas.

Parece fúnebre, mas tive a vontade de ler o tal livro depois de ver o filme (escrevendo este texto resolvi consultar o preço na internet... 10 reais, baratinho... comprei). Não, não sou suicida nem nada, mas uma frase onde diz que "se nos encontramos acuados, sem perspectivas, temos que encarar a vida, olhá-la de frente, e depois podemos largar tudo"; merece ser lida dentro de um contexto. Não é bem assim não, mas é parecido...

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