segunda-feira, 29 de abril de 2024

Um minuto para os comerciais... e já voltamos com o diabo!


Crescer à base da televisão dos anos 1970 e 1980 foi louco. Aquele ambiente outrora 100% familiar e controlado, passou a flertar com o imprevisível e a necessidade de esticar os limites do espectador. Na guerra pela audiência, cada pontinho contava. Não demorou para descobrirem que o povão gostava de sentir medo.

No Brasil, a festa da imprensa marrom logo migrou para os sinais de TV. E dá-lhe Documento Especial, Linha Direta, Globo Repórter e segmentos inteiros do Fantástico, do Programa Flávio Cavalcanti e do Programa Silvio Santos dedicados ao choque e ao oculto, sempre precedidos pelo aterrorizante aviso "as imagens a seguir são fortes, por favor, tirem as crianças da sala."

Desnecessário dizer que sempre assistia a tudo com um sorriso trêmulo por fora e um trauma dilacerando minh'alma por dentro.

Late Night with the Devil traz todo esse zeitgeist e essa bagagem, vá lá, vintage que tem uma ressonância-monstro em quem já cruzou a marca dos 45. O filme foi escrito e dirigido pelos irmãos Colin e Cameron Cairnes, que certamente comeram, beberam e respiraram materiais de arquivo da época.

O resultado em tela é nada menos que impressionante.


No filme, o ótimo David Dastmalchian interpreta Jack Delroy, apresentador do programa Night Owls with Jack Delroy, mistura de programa de variedades e talk show. Para a sua infelicidade, Jack concorre com o icônico The Tonight Show Starring Johnny Carson e, logicamente, vai de mal a pior. Numa medida desesperada para levantar a audiência, Jack e seu produtor decidem fazer um programa especial de Halloween. Como convidados, um médium, um cético, uma parapsicóloga e uma adolescente supostamente possuída por um demônio.

É claro que, no decorrer do programa, o circo literalmente pega fogo. E ao vivo.

Mesmo curtinho (93 min.), Late Night with the Devil tem um pano de fundo complexo. Na abertura, a vida e a carreira de Jack Delroy são devassadas em uma espécie de documentário com a narração em off do veterano Michael Ironside. Daria material para uma minissérie, fácil. O filme em si é o próprio programa em tempo real – e sem cortes quando entram os comerciais. Com habilidade, os irmãos Cairnes conduzem as transições da exibição de TV para o formato found footage cobrindo as cenas de bastidores e vice-versa.

A cenografia e os figurinos são um espetáculo à parte. Jogam aquele espectador +45 de volta ao passado como se fosse a dupla Doug & Tony despencando pelo continuum em O Túnel do Tempo. Fora que é uma grande homenagem à cultura televisiva de massa (para o bem ou para o mal). Por vezes, lembra uma reedição do Isto É Incrível, adaptação do Silvio Santos para o original americano That's Incredible! – do qual o filme pega emprestado boa parte da estética.

Isso também se reflete nos trejeitos e inflexões de época adotados pelo elenco. Dastmalchian está no topo do seu jogo. Laura Gordon, que interpreta a parapsicóloga June, e a promissora Ingrid Torelli no papel da endemoniada Lilly D'Abo (a sutileza do sobrenome) também estão sensacionais.

Mas os meus favoritos em cena são os underdogs: Fayssal Bazzi como o psíquico Christou, Rhys Auteri como o assistente de palco Gus e Ian Bliss, genial como o ilusionista, cético e caçador de fenômenos sobrenaturais Carmichael Haig. Divertidíssimos de assistir.


Late Night with the Devil mostra o quão esses irmãos Cairnes são talentosos. Com a câmera atenta aos detalhes, eles montam um engenhoso mix de humor, suspense e terror, incluindo um inesperado toque folk horror. E sempre mantendo a atmosfera pra lá de tensa, na veia slow burn, como se cada intervalo fosse a última chance de fugir antes das câmeras voltarem a rodar e o pandemônio se instalar mais uma vez.

O roteiro, além de esperto nas referências (O Exorcista compels you!) e no subtexto ponderando as consequências do sucesso a qualquer preço, também guarda uma boa parcela de reviravoltas para alguns personagens. Mesmo o final que ensaia contornos Lynchianos – o que me fez tremer nas bases pelo risco inerente – acaba devidamente contextualizado. No fim, remete ao bom e velho e impiedoso Rod Serling mesmo.

Não falta vontade de comentar mais a respeito, mas longe de mim entregar o final do show...

7 comentários:

Luiz Carlos Marcolino disse...

Salve Doggma! O David Dastmalchian se destaca em tudo que faz. Uma hora e meia ou trinta segundos, não importa, o cara sempre manda muito bem. O irônico é que nos filmes do Homem-Formiga o personagem dele morre de medo do sobrenatural. E nunca podemos esquecer que tivemmos no Brasil o maravilhoso Comando da Madrugada, um dos melhores de sempre. Um abraço.

doggma disse...

E aí, Luiz!

Putz, saudoso Goulart de Andrade... um mestre da comunicação. E também explorou muitos desses temas relacionados ao oculto. In loco!

Dastmalchian brilha no filme. Ele é o tipo de ator que rouba a cena só com o olhar. Se encontrar o projeto certo, já era...

Abraço!

Luiz Carlos Marcolino disse...

PS: Já viu Ghostwatch? Eu nuca tinha ouvido falar disso, até ver uma crítica do Dale, no Youtube.

doggma disse...

Também não conhecia até ver um link no Wikipedia do filme. Inclusive, parece que teve muita influência. Botei na fila...

Luwig Sá disse...

Primeiro de tudo, te confesso que li por cima o post que você escreveu inicialmente sobre o trailer. Nem apertei o play. Queria ver essa bagaça com o mínimo de mediação.

E, cara, que diversão...

Vi tarde da noite como o nome do filme sugere. Não chega a assustar nada ou te dar um jump scare safado. É legal justamente por pegar essa visão de mundo pregressa que a galera dos 40 e poucos têm e bater no liquidificador com premissas à moda Exorcista. E, olha, que coisinha imersiva. Em dado momento, eu olhava pra plateia, imaginando que um daqueles mascarados era mesmo o Coisa Ruim. Ou será que era mesmo...?! O "Ossos Cruzados" ali me deixou com uma pulga atrás do orelha.

Valeu pela dica. Já entra na minha lista de melhores do ano, pelo menos, no Top 5.

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* Viu que o Carmichael Haig lá era o Bane de Matrix 3? :P

Marlo de Sousa disse...

Assisti ontem à noite, sofrendo um pouco para deter o sono, pelo tarde da hora (o homem 50+ naturalmente dorme e acorda com as galinhas, e desafiar esse instinto é tarefa inglória). Gostei a ponto de querer rever já hoje. Dastmalchian tem uma cara meio Gregório Duvivier, já notou? Não consigo desvê-lo dessa forma desde que percebi, hahaha!

Tenho sentimentos ambíguos quanto ao final, mas espero que a segunda vez traga algum tipo de clareza. De modo geral, achei que gastei bem esses 90 minutos.

Abraço!

doggma disse...

Luwig, nunca que ia lembrar que era o mesmo ator do Matrix 3. Valeu pelo toque. E foi o maior destaque pra mim daquele filme, com sua mímica perfeita de Hugo Weaving... Então, reitero que o cara é genial. :P

Sobre o carinha-Ossos Cruzados, não há nada que implique que seja mais do que um membro da plateia. Se fosse chutar, diria que é um membro do culto que o Jack se envolveu (o trecho folk horror do filme), só pra garantir que tudo saísse como planejado.

Inclusive, Jack vende a alma diante de uma estátua gigante de coruja, remetendo ao nome do show. Os caras deviam estar infiltrados na produção desde o início.

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Marlo, de fato, o cara é a lata do Gregório. Agora que você me trouxe essa imagem, já era. Muito obrigado. 🥴

Aquele final tem tantas camadas, que vi até inspirações no Black Lodge de Twin Peaks (daí a vibe Lynchiana)... Mas acredito, por hora, que aquilo tudo foi uma grande armação do The Grove para espalhar a palavra. E naquele momento, o programa estava em 1º lugar na audiência.

Ao meu ver, foi tudo orquestrado, desde o suicídio coletivo do culto do Szandor D'Abo. Lilly não era uma sobrevivente, ela foi escolhida e condicionada para a "missão". As expressões dela já entregam a malícia.

Apenas conjecturas... Vou rever a bagaça com uma lupa.

Abração.