sexta-feira, 14 de outubro de 2022

To Hell and Back


Hellraiser finalmente deixou de ser sinônimo dos dois, três... vá lá, dos quatro primeiros filmes. Admito que já havia dado baixa mental e espiritual da franquia há tempos — para ser exato, desde o pastelão Hellraiser: Revelações, de 2011. Desse modo, nem imaginava que um novo longa estava a caminho via Hulu e que me levaria da total ignorância ao deslumbre em meras duas prévias. Muito menos que a produção faria um reboot radical, com Cenobitas clássicos totalmente recauchutados e apresentando alguns novos padres da Igreja Pentacular de Leviatã. Dever cumprido com maestria, dadas as circunstâncias.

Como que submetida aos deleites sadomasoquistas da série, a jornada não foi das mais tranquilas. Trocas de estúdios, diretores (até Pascal Laugier, de Martyrs, assumiu a cadeira por um tempo), roteiros reescritos, disputas legais, incluindo do próprio Clive Barker, e toda a sorte de contratempos conspiraram para a franquia cinematográfica purgar indefinidamente n'alguma gaveta esquecida no inferno da burocracia. Mas, parafraseando o famoso motto de Pinhead, a série ainda tinha visões incríveis para nos mostrar.

E mostrou. Não tudo, mas o suficiente para um recomeço.

Resolvidas as pendengas estruturais e legais, com direito à benção e co-produção de Barker, a produção foi alinhada entre a Spyglass Media Group e a Phantom Four Films. A direção ficou a cargo de David Bruckner, do bom A Casa Sombria (The Night House, 2020) e do melhor segmento de V/H/S ("Amateur Night"). Não me admira que este Hellraiser '22 tenha se desenrolado bem distante do crivo público. Com a marca completamente esculhambada, apenas aficcionados die-hard seguiram naquele trem. A (falta de) receptividade aos dois últimos filmes, Revelações e Julgamento, de 2018, só pode ser comparada à do infame Hellboy de 2019, pra ficar no Hellxploitation.

Até abaixo, diria. Lá pela profundidade do 9º círculo. Ou mais.


Agora o brinquedo vem com manual

A intro é à caráter: a boa e velha puzzle box da Configuração do Lamento sendo reavida no mercado negro e levada para uma festinha privada na mansão de um magnata hedonista (Goran Višnjic, renascido sabe lá de onde). Seu objetivo é usar o artefato para exigir uma audiência com Leviatã, o deus da dimensão dos Cenobitas. Cortando para seis anos depois, os junkies Riley (Odessa A'zion) e seu namorado Trevor (Drew Starkey) invadem um armazém abandonado e encontram a caixa de forma suspeitíssima. Dali até os Cenobitas se refestelarem num bacanal de correntes, sangue e vísceras é um pulo.

O roteiro foi desenvolvido por Ben Collins e Luke Piotrowski a partir de um plot da dupla com o onipresente David S. Goyer. Originalidade passa longe. Mas é funcional e confere uma perspectiva moderna e alternativa da novela original. Em nada lembra o antológico filme de 1987 — ainda o melhor, que conste nos autos — e não apenas recoloca o mythos de volta aos trilhos, como aponta para novas direções. A esta altura, era exatamente o que Pinhead e a gangue do Labirinto precisavam.

Provavelmente por ver este Hellraiser mais como um ponto de partida para voos futuros, foi fácil fazer vista grossa para as presepadas do script. Algumas são protocolares, como, por exemplo, a incrível estupidez dos personagens. Da mesma forma que vermes alienígenas precisavam ser engolidos pelas vítimas para existir uma história em A Noite dos Arrepios, a caixinha precisa ser manipulada e decifrada para os Cenobitas aprontarem suas peripécias. É uma longa caminhada do ponto A ao ponto Z, portanto.

Considerando que o Necronomicon precisa ser lido ao menos uma vez em bom sumeriano em Evil Dead para a diversão correr solta, aqui também há uma tolerância implícita que cobre as primeiras mortes — convenhamos, no mundo real, caixinhas vintage não são portais para freaks extradimensionais fãs de bondage extremo fincarem ganchos acorrentados no rabo alheio. Do terço inicial em diante, a repetição da armadilha só funciona na base da burrice mesmo. Especialmente quando os personagens já estão mais ou menos escaldados das consequências deste ato.

A partir de certo ponto, algumas atitudes me lembraram até o meme do macaquinho Curious George.


Jamie Clayton, creditada simplesmente como The Priest, é pura força magnética. Difícil desviar a atenção daquele visual, ainda mais quando ela serve como uma perfeita mestra de cerimônia. Toda a nova concepção dos Cenobitas, por sinal, está espetacular. The Gasp (Selina Lo), The Weeper (Yinka Olorunnife), The Asphyx (Zachary Hing), o novo The Chatterer (Jason Liles), a perturbadora The Mother (Gorica Regodic) e, meu predileto, The Masque (Vukasin Jovanovic) estão irrepreensíveis e praticamente imploram por spin-offs solo. A química estava afinada e o árduo trampo de F/X brilhou na tela.

Um único porém foi o preço: com tantas criaturas promissoras estourando a retina, o tempo de tela foi muito econômico. E diria quase comportado no quesito sanguinolência, sendo que meio minuto de Frank no Hellraiser '87 já supria essa demanda.

No final, o sentimento é bem satisfatório. Podia ter sido melhor? Bastante. Mas em tempos de vigilância paranoica 24/7, diria que a criação de Clive Barker atingiu a transgressão uma vez mais. E aguardo ansiosamente pelas próximas.

2 comentários:

Marcelo disse...

Para quem curte essa historia o filme caiu como luva...vai ser identico ou igual? Nunca...mas ta tudo ali em proporções menores o que ja e uma vitoria p/ quem viu os outros que nada tinham a ver com o enredo. Que venham +....

doggma disse...

Um dos melhores aspectos do Hellraiser '22 é passar a limpo as regras do jogo, que, novamente, são mais complicadinhas que o slasher padrão. Daqui pra frente, o gore pode rolar sem a preocupação de ficar reiterando essas coisas passo a passo.

E quero ir pro inferno!

Err...

Quero ver alguém do filme indo pro inferno de Hellraiser!