sexta-feira, 19 de abril de 2024

90 centímetros a mil


Nelson Ned não tinha 90 centímetros. Tinha 1 metro e 12. Isso não impediu a gravadora de tascar a marca fake em seu disco de estreia, Um Show de Noventa Centímetros, de 1964, por questões marketeiras. Está tudo bem explicado na bio Tudo Passará: A Vida de Nelson Ned, o Pequeno Gigante da Canção (Companhia das Letras, 2023), escrita pelo jornalista André Barcinski.

Bio, aliás, que anda fazendo mais barulho que o próprio Barulho. Merecido.

Querendo ou não, cresci ouvindo Nelson Ned. Nada de rock americano ou pós-punk inglês lá em casa, apenas a fina flor das paradas AM: trilhas de novelas, compactos e elepês de Roberto Carlos, Ângela Maria, Núbia Lafayette, Clara Nunes, Nelson Gonçalves, Sérgio Reis. De artistas internacionais, dá-lhe Ray Conniff e italianos como Peppino di Capri, Sergio Endrigo e Nico Fidenco. E havia o Eu Também Sou Sentimental, então, para mim, um muito curioso disco de 1970.

a capa já me deixava fascinado, com o Nelson sentado num banco, fotografado de corpo inteiro (raridade). Nunca havia visto alguém com nanismo, quanto mais um cantor com nanismo. Era desconcertante ouvir aquele artista pequenino com um vozeirão tão imponente. Era mágico até.


Na fauna midiática popularesca do Brasil dos anos 1970-1980, Nelson Ned era um paradoxo. Surgia num Chacrinha aqui, num Raul Gil ali, num Silvio Santos acolá e sumia. Parecia muito ocupado, pois seguia no topo da forma vocal e não parava de lançar discos.

Tínhamos certa noção do sucesso dele lá fora, mas não fazíamos ideia do tamanho desse sucesso. Um pouco pela barreira cultural que separa o Brasil dos demais países da América do Sul e muito pela má vontade da imprensa brasileira com a obra do Nelson. Não havia informações, excetuando algumas poucas matérias em programas de variedades. E mesmo assim nenhuma dava a dimensão exata.

Tudo Passará traz justiça à jornada de superação de Nelson Ned e à sua carreira única no estrelato mundial. Mais ainda, faz uma reparação histórica do jornalismo musical brasileiro com o cantor. Espero sinceramente que não acabe por aí.

O texto de Barcinski tem uma dinâmica ágil e bastante visual. Serve perfeitamente como base para o roteiro de um filme – ou de uma minissérie da Netflix ou da Globoplay, quem sabe? A tocante sequência de abertura, mostrando os bastidores de um show do Nelson do ponto de vista do baterista Raymundo Vigna, é para ler chorando e fazendo o enquadramento da cena com as mãos.

Essa sensação acompanha a maior parte da leitura como uma opção narrativa eficiente e instigante, jamais de maneira apelativa.


O livro cobre desde as suas origens humildes em Ubá, na Zona da Mata Mineira, e as primeiras incursões em carros de som e programas de rádio até o avassalador sucesso na América Latina e na África lusófona. E, claro, também traz toda a bagagem hardcore de sexo, drogas e violência que o próprio Nelson, já evangélico, não se furtava em confessar em entrevistas.

Esse é outro aspecto que também não tínhamos ideia do tamanho da encrenca. Tudo é esmiuçado em detalhes de empalidecer até o Keith Richards. Nelson Ned não era brinquedo.

A bio contou com o precioso apoio e colaboração da família de Nelson, aparentemente sem restrições. Algo que não se vê muito por aí, infelizmente.

Uma dica aos aventureiros é deixar as orelhas e o ótimo texto do Marcelo Rubens Paiva na contracapa para leitura posterior. Preservar as surpresas da experiência foi tão bom que até evito – com muito esforço! – comentar aqui sobre as situações cabulosas e as figuras improváveis que pipocaram na trajetória do Nelson. O livro merece. E o leitor, mais ainda.

De ruim, é justamente o tamanho (sem trocadilho): apenas 256 páginas que passam rápido demais. Menos que as imersões de Vale Tudo: O Som e a Fúria de Tim Maia e do 50 Anos a Mil, do Lobão – em contrapartida, é bem mais fluído e sem a prolixidade, por exemplo, de Chacrinha: A Biografia. Provavelmente, mais uma opção de abordagem.

O importante é que agora finalmente há um registro oficial para esta história inacreditável. E bota inacreditável nisso.


Coisa que o próprio Nelson Ned tinha consciência há tempos.

6 comentários:

Sandro Cavallote disse...

Esse será um dos próximos! Tô doido pra ler!

doggma disse...

Difícil largar o livro depois da leitura começar... nesse nível.

Marcelo disse...

Monstro...literalmente falando.

doggma disse...

Figurativamente falando, hm? :)

Marlo de Sousa disse...

Confesso que sou um completo ignorante em Nelson Ned, mas sabia que ele gozava de grande prestígio no exterior. O Brasil sempre foi muito bom em subvalorizar grandes talentos - com ou sem trocadilhos, você escolhe. Seja como for, talvez dê uma conferida no livro antes do catálogo do Ned.

Entrei no link do seu texto sobre o livro de Lobão e tivemos impressão parecida. Livraço! Dei um tremendo benefício da dúvida, pois, quando li, ele já bostejava muito na twittosfera, achando que isso não ia se voltar contra ele. Deu no "arrependimento" que vimos.

Abraço!

doggma disse...

Fala, Marlo!

Quando li a bio do Lobão, ele ainda estava em alta e renascido na mídia - lembra daquele episódio no programa Transalouca, da Transamérica?

Pouco depois ele foi mais um a sofrer daquela alucinação coletiva fascistóide-das-bananas. Pelo menos, não durou muito.

E não é necessário conhecimento prévio da música do Nelson Ned. Pelo contrário: o Barcinski faz uma apresentação bem completa da música e da discografia dele, com direito a um mapeamento "Best Of" no posfácio.

Claro, se você conhecer de antemão alguns nomes tão díspares quanto Chacrinha, Sylvinho Blau-Blau e, acredite, Pablo Escobar, a leitura vai beirar o surreal...

Abração!