quinta-feira, 7 de julho de 2005

9 ½ SEMANAS DE TUDO O QUE VOCÊ SEMPRE QUIS SABER


Existem situações que apenas um cinéfilo sem grana pode vivenciar. Gente como a gente transforma a prática de pegar filmes em locadoras em obrigação religiosa, o que por vezes faz com que fiquemos sem opção. Nestas horas sempre apelamos para o que já ouvimos falar de um ou de outro filme, e de Os Sonhadores (The Dreamers, 2003) a única referência que tive foi de um cara que achou a protagonista muito gata. Até aí, apenas por ter protagonista gata no elenco, pegar um pornô seria mais eficiente e, se quisesse pornô com historinha, sempre temos a opção do Cine Privé da Band (ainda temos?). Arrisquei e não me arrependi.

O filme conta a história de um tímido estudante americano em Paris, onde encontra um casal de gêmeos franceses que o introduz nos prazeres da vida em plena revolução estudantil de 1968. Fica parecendo que é filme de cunho político, mas na verdade é apenas um dos contextos que o filme usa, servindo como base para a descoberta pelos protagonistas da sexualidade e além, tudo isto na época da Cinematéque, uma das paixões do diretor Bernardo Bertolucci, como ele mesmo diz nos extras do DVD.

A produção abusa das cenas eróticas, recheadas de incesto e relações de amor um pouco diferentes do que estamos acostumados por aqui, já que a relação carnal entre o americano e a francesa cede espaço ainda aos sentimentos sublimados entre os dois caras do triângulo (sublimados, mas quase dando lugar ao contato físico) e também ao relacionamento incestuoso, cheio de sexualidade e interdependência dos gêmeos.


No mundo carnal de hoje, sou da opinião que as cenas são pretensamente chocantes. Digo "pretensas", pois creio ser possível inserir o elemento sexual sem que a super-exposição tome vida própria para tornar-se praticamente uma personagem do contexto ao invés de um contexto para as personagens. Tive a sensação de que a composição plástica adotada para o sexo assumiu importância demais frente à simples influência que a indução da idéia poderia ter. E sim, a garota que meu amigo disse ser gostosa abusa do adjetivo. O que é aquilo! Pelamordedeus!

A coisa é tão explícita que Bertolucci consegue transformar o frisson que a classificação X-Rated de O Último Tango em Paris – um de seus filmes antigos – seja coisa de criança.

Mas o período político e o sexo não são os únicos contextos. Há também a avalanche de referências a filmes do passado - principalmente musicais americanos e Godart - que devem trazer alguma nostalgia para os mais aculturados no gênero, o que agrega ao filme a característica de homenagem ao cinema de uma época bem definida. Eu mesmo que não vi nenhuma das produções mencionadas, mas mesmo assim senti a nostalgia no ar e o prazer intrínseco à Sétima Arte quase palpável.

Eva Green é a atriz que rouba a cena, uma francesa que não havia figurado em nenhum outro filme de maior vulto até então, mas que já está no elenco do vindouro Kingdom of Heaven (2005).


Os outros atores que completam o cast de protagonistas são Michael Pitt e Louis Garrel. O primeiro pegou o papel depois da recusa de Jake Gyllenhaal e Leonardo Di Caprio, enquanto o segundo só está presente em produções de sua própria pátria.

Tudo é bem recheado com uma trilha sonora escolhida a dedo e contribuindo destacadamente para a composição do ambiente de fim dos anos 60, onde jazz, música francesa e rock americano se misturam e se complementam. Época em que a cultura francesa ainda exportava música aos borbotões, mas já sentia a influência americana em franca expansão.

Voltando para o fundo sócio-político, e interessante o embate presente no discurso "flores vs armas" constante nos diálogos entre o francês e o americano. O primeiro, apesar de fã de Che Guevara e Mao Tse Tung , diz que sempre há a opção do debate, da solução civilizada, enquanto o americano destaca a força do estado solapando a idéia de debate. Seria forçar a barra com o estereótipo do americano sangrento – e este não é, apenas manifesta entendimento do seu lugar na sua sociedade – contra o francês pós 2ª Guerra e dito pacificador. Mas apenas seria. As posturas dos três frente às ocorrências na cidade mostram que o discurso é cego, como normalmente é o discurso de jovens em final de formação ideológica, e não possui eco em atitudes, já que vivem numa vida mentirosa, falsamente racional, reacionária e agnóstica, mas optam pela alienação social purista justificando-se no aprofundamento cultural e, quando o status quo exige uma atitude, as posturas do grupo mostram qual deles realmente entende o mundo. É o tipo da coisa que faz-me pensar o que realmente faço para melhorar aquilo que acho errado no mundo e no meu país, mas este tipo de debate neste veículo não se encaixa.

Todos os elementos destacados neste texto constroem uma atmosfera ensimesmada. Quase como filmes de náufragos, onde temos uma pessoa com todo um mundo pela frente, mas que está enclausurada à força em uma vida indesejada, como que preso numa caixa sem chave. É exatamente o que acontece aqui, com a diferença do enclausuramento voluntário, e da pseudo-autosuficiência sentimental num mundo onde bastam existir os três. Neste mundinho particular o ar parece denso, sensivelmente tangível, seja pela ligação entre os irmãos, seja pela relação com os pais distantes ou pela influência do elemento externo, mas tudo contribui para realçar as diferenças e semelhanças existentes no que ocorre no discurso político e dentro de casa. Assim como os dois dizem-se contestadores do regime de De Gaulle, levantando vozes para sua libertação cultural – movimento que acabou por originar a força dos sindicatos na Europa – a postura alienante em busca do prazer imediato contradiz as idéias pregadas. Foi preciso a presença de alguém de outra cultura e visão de vida para que se transformar no elemento que, uma vez entrando naquela vidinha, começa a propagar a mesma postura de mudança. Neste ponto o título do filme é perfeito e não poderia ser outro a não ser Os Sonhadores.

Nenhum comentário: