domingo, 18 de dezembro de 2005

GOD SAVE THE KING


De todas as formas de arte, o Cinema talvez seja a que captura o imaginário popular da maneira mais urgente e direta - mesmo que o objeto dessa imaginação preze pela mais absoluta bizarria. Sabe-se lá por quê diabos certas premissas, de tão insólitas, acabam alçando uma condição de quase-mito e criando verdadeiros ícones pop. Um gorila de dez metros arrebentando em Nova Iorque é uma delas. Talvez seja pela personificação do nobre selvagem, pela crítica subentendida à intervenção inconseqüente do homem na natureza ou pelo simples cagaço de imaginar um bicho desses solto por aí. Ao longo dos anos, a imagem do King Kong se tornou uma marca tão reconhecível quanto Mickey Mouse e Superman (só perde para o Papai Noel da Coca-Cola, aquele velho batuta). Até mais, eu diria, visto que, fora os remakes e o vale-tudo com o Godzilla, a referência primordial é unicamente o clássico de 1933, limitando-se aí ao merchandising e à uma gama de referências soltas ao personagem. Mesmo assim, Kong ainda é o King. Imagina se o mito tivesse sido bem administrado esses anos todos.

Outro ponto é o arco fechado que constitui o filme original. A saga tem início, meio e fim, o que (teoricamente) inviabilizaria qualquer pretensa continuação. É possível que se trate de uma obra atemporal, visto que provoca curiosidade até hoje. Então, fica difícil justificar a existência do King Kong de Peter Jackson a não ser pela sua divulgadíssima devoção ao filme. O mesmo se pôde dizer do ótimo Gus Van Sant e seu desnecessário Psicose, clonado frame a frame do clássico de Hitchcock - o que me leva a questionar a validade de refazer algo que já é perfeito em sua proposta. Contudo, desse mal Jackson não sofre. O que ocorre no novo King Kong é bem mais um upgrade do qualquer outra coisa. Ao contrário do remake de 1976 (bastante competente, diga-se de passagem, e aí vai o meu escalpo a preço de banana), o filme se atém às mesmas marcações situacionais do original, devidamente anabolizadas com vitamina CG e belas jogadas individuais do zagueiro Jackson. Até cenas cortadas na edição do original foram recriadas, sem qualquer prejú para a fluidez da história.

Fico imaginando que representar os personagens de King Kong seja mais ou menos como encarnar figuras como Hamlet, Lobo Mau ou Chapeuzinho Vermelho. Todos os trejeitos, inflexões e motivações estão lá, bem sedimentadas e se completando mutuamente. Tem o galã fake, o herói puro de coração, a mocinha em perigo, o louco obsessivo, e por aí vai. São a matéria-prima para os estereótipos que ajudaram a forjar a cara da cultura popular moderna. Todos se saem muito bem.

Maravilhosa de linda, Naomi Watts encarna à perfeição o papel de Ann Darrow, a Bela. É uma grande atriz e ocupa tranqüila a lacuna que Nicole Kidman vem deixando com seu progressivo distanciamento daquilo que realmente importa. A cena em que ela tenta ganhar a simpatia de Kong é bem espirituosa e, ao mesmo tempo, desconcertante. Já Adrien Brody tem um olhar tão piedoso que dá vontade de meter a mão no bolso e lhe entregar a carteira com o salário do mês. Usando isto ao seu favor ele eventualmente - e merecidamente - se dá muito bem (como em O Pianista), mas, às vezes, acaba resvalando numa irritante mistura de auto-comiseração com falta de atitude. Nada que chegue a atrapalhar, já que seu personagem, Jack Driscoll, é hesitante por natureza.

Quanto ao Jack Black, confesso que estava bem curioso e fiquei ainda mais após ver seus comentários hiper-exaltados no vídeo-blog da produção. JB é um Taz live-action. Como Peter Jackson iria domar a fera? Ajudou bastante o fato dele ter ficado com o papel do diretor-showman Carl Denham. Bem mais contido que de costume, mas mantendo o fôlego de sempre, ele consegue ser engraçado, malandro e (bastante) odioso, exibindo um timing invejável. Sempre tive um interesse especial por este tipo de personagem obsessivo e algo irracional. Cineastas que encaram a profissão quase como uma ciência (ou uma religião, ou um vício) já renderam performances memoráveis, como John Malkovich em A Sombra de um Vampiro, Johnny Depp em Ed Wood e até Burt Reynolds em Boogie Nights. Faltou isto aqui pro Jack Black chegar lá.

Pórem, o melhor ator em cena é mesmo o Kong, digitalizado a partir das macaquices de Andy Serkis, ex-Gollum. Kong faz caras e bocas, é divertido, orgulhoso, melancólico e assustador. O gestual, a anatomia e a física envolvida estão às raias da perfeição, à exceção de um ou outro relance mínimo. O resultado final é um passo à frente na área e isso está estampado em cada pêlo tremelicante do gorilão.

Serkis também comparece em carne e osso no filme, no papel do marujo Lumpy (o bigodudo de boina). Bom ator, hein.


Talvez o grande desafio de Jackson tenha sido rechear um argumento que, no original, durava pouco mais de uma hora e meia pra ser contado. Atualizando a narrativa pra lá de sintética do cinemão da época, estica-se aí para umas duas horas, já exibindo uma barrigada de sete meses no roteiro. Pois Jackson espichou a coisa pra pouco mais de três horas. Contudo, são três horinhas saradas, cheias da disposição, com alguns poucos pneuzinhos aqui e acolá. Tudo bem, King Kong é uma ode ao minimalismo (quer algo mais minimalista que um macaco gigante no topo de um arranha-céu tentando estapear uns biplanos?), o que não impede a viagem de ser divertida até o clímax-referência pop. Na verdade, é em seus dois terços iniciais que King Kong superfatura o preço do ingresso.

A New York fudida da Grande Depressão foi retratada primorosamente. O clima de desolação e pendura geral foi ilustrado de forma rápida e eficiente. Mas é na Ilha da Caveira que o mesmo doente que realizou Fome Animal dá as caras e a diversão alcança níveis quase diabólicos. O lugar faz a ilha de Jurassic Park parecer... um parque. É o inferno na terra. Nativos que parecem possuídos pelo espírito do Aiatolá Khomeini em dia de segunda-feira, insetos, ácaros e zicziras gigantes, dinossauros sempre em horário de almoço, fazem o King Kong parecer o Frei Damião, tamanha sua bondade em apenas atirar os humanos a esmo por aí. É uma festa no apê do capeta, cheia de greatest hits - a mais incômoda foi a parte em que nossos heróis tentam sobreviver em um ambiente que lembra uma fossa do tamanho do Maracanã e infestada de criaturinhas adoráveis querendo fazer uma boquinha (ou duas, três...). Essa cena, inclusive, foi uma das descartadas no filme original. O ponto alto, como sugerido dos previews, é o telecatch de Kong contra uma turba de T-Rexes insandecidos querendo comer a Naomi (realmente eles tinham uma boa motivação). Antológico. A seqüência nos cipós, com a variação dos pontos de ação, é Spielberg puro.

- E só pra registro: a seqüência em que Kong revira o tronco atravessado no abismo ficou muito mais tensa e arrepiante no remake de 1976 (sendo um dos melhores momentos daquele filme).

Como nem tudo é perfeito, o andamento dá uma brecada a caminho da reta final, no que poderíamos chamar de "parte sensível" do filme. O problema é que a química entre Naomi e Kong se desenvolve ao máximo bem antes da conclusão. Daí pra frente o bom trabalho deles fica seriamente comprometido pela esticada do roteiro. De qualquer forma, ainda rende uma cena realmente bela, quando os dois brincam na neve. Pode parecer piegas, e é mesmo, mas é bonito de se ver.

Sobre a readaptação do enredo, há pouco a se comentar. Muito daquela logística perneta do original foi mantida, afinal ela acabou atrelando um certo charme involuntário ao conceito. Use a imaginação. "Como eles conseguiram tirar o navio do meio das rochas?" - Maré. "Como eles transportaram o gorila até o continente?" - Pediram ajuda pelo rádio. "Onde foram parar os nativos?" - Se esconderam, pô. "Como Jack conseguiu encontrar Kong e Ann naquela ilha infernal e gigantesca?" - Não sei, só sei que foi assim. E por aí vai.

King Kong é o último blockbuster de 2005 e pra ser sincero eu nem lembro quais foram os outros. Mas uma coisa eu posso dizer: se restasse esse filme como referência do cinemão pipoca desse ano, eu diria que ele está muito bem representado.

Long live the King.

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