quarta-feira, 20 de setembro de 2006

BUENA VISTA VICE CLUB


Dois anos após o ótimo-e-ficando-melhor-a-cada-assistida Colateral, Michael Mann retorna ao campeonato jogando em casa. É ponto pacífico que a série foi um case símbolo de sua era. Não que isto seja depreciativo, não totalmente. Talvez em termos de estética - mas até aí, mullet e blazers brancos não são tão mais ridículos que a obsessão por celulares e modinhas tenebrosas que duram menos de uma semana. O que importa mesmo é o conteúdo (caso você ainda não tenha ouvido isto hoje). E neste ponto, o material aqui sempre se garantiu, com ou sem Phil Collins. Mas a verdade é que sou suspeito pra falar. Gostava da série. Muitas vezes, até pelos seus defeitos e - por mais estranho que isto soe - aprendi a beber e degustar Michael Mann (coisa que não consegui com a tal da Campari). Hoje, sou um "somMannlier" profissional e, obviamente, fui ao cinema me sentindo o próprio Tommy Vercetti. A barba de três dias e o cabelão cultivado por meses à fio eu já tinha, faltaram só o blazer branco e, principalmente, uma Testarossa ao redor do meu corpo. Todo esforço era pouco para prestigiar o retorno do SuperMann.

Miami Vice (2006) é, antes de tudo, o flagrante da evolução de um profissional cujo nível técnico já era absurdamente alto. E marca o segundo grande passo do diretor/roteirista rumo àquela idiossincrasiazinha autoral que destaca um gênio das cigarras preguiçosas que somos. Se em Colateral o cineasta se mostrou encantado pela infinidade de texturas possibilitadas pelas belezinhas da Viper FilmStream e experimentações com filtragem digital, em Miami Vice ele lança a versão Beta de sua tese sobre o assunto. Ao contrário da libertinagem putesca de Tony Scott em Domino, Mann utiliza tais recursos off-road como uma poderosa ferramenta de amplificação para a atmosfera densa e visceral proposta pelo roteiro.

Ou seja: sem resquício de virtuosismo egocêntrico, seu THC visual realmente obtém resultado prático perceptível no que se vê na telona. Se algum dia houve glamour em levar um tirambaço em cena, aqui esta impressão passa bem longe.

Se for parar pra pensar, a festança do HD que houve na sala de edição é bem compreensível, já que a temática The Mann conhece bem. O universo de Miami Vice é do tipo que não envelhece. Ao menos, não enquanto crime organizado, cartéis do narcotráfico, caos urbano, corrupção policial e todo tipo de escrotitude humana estiverem na pauta do dia.


Na página dedicada ao filme no IMDb, alguns fãs da série original reclamaram que boa parte da história se passa fora de Máiâmi, opção que achei curiosa. De fato, esta década e meia de globalização galopante rendeu alguns momentos inusitados (e outros, bizarros mesmo). Precisou um irlandês para se atualizar o estereótipo do californian boy dos anos oitenta, com uma dose de cinismo e atitude à tira-colo. A mistura etno-cultural já começa aí e, embora o Detetive "Sonny" Crockett fosse mais gaiato e canalha com o Don Jonhson, Colin Farrell (o tal irlandês) entra no clima e atinge lá a sua cota de estilo. Mais interessante ainda é ver que Ricardo "Rico" Tubbs agora é o talentoso Jamie Foxx - e lá se vai a afro-latinidad sugerida de Philip Michael Thomas. Em compensação, o filme passeia por alguns países da América do Sul e ainda faz umas escalinhas em Cuba. Os vice-guys estão agora globalizados. Cresceram e deixaram as guerras de gangues pra caçar os verdadeiros tubarões em mar aberto.

...que, por sinal, estão mui bien representados pelo hiper-mega-narcotraficante - saca o nome - Arcángel de Jesús Montoya, interpretado por Luis Tosar com tal frieza e crueldade que faria Noriega e Don Escobar o chamarem de el patrón. Sabe aquele episódio velhusco da série que você mal se lembra? Então... este serve como sinopse. Sonny e Rico se infiltram em um esquema de transporte de drogas para os EUA, controlado por uma importante quadrilha do tráfico internacional. No topo da cadeia, o narco-CEO Montoya delega o ativo circulante lá de sua mansão no meio da selva e na "contabilidade", estão o desconfiado cabrón José Yero (John Ortiz) e la bella Isabella (Gong Li, bela) gerenciando o franchising no país do Tio Sam.

Cabe dizer que as duas cenas de sexo existentes no filme são primorosamente filmadas e remetem (sem trocadilhos) à seqüência memorável entre Al Pacino e Diane Verona, no início de Fogo Contra Fogo, também obra do Mann. Realismo é o que há. E, mesmo que não tenha nenhum tiroteio no nível do que acontece naquele filme (o melhor que já vi, por sinal), todos eles têm um impacto tão efetivo e necessário à narrativa, que as balas mereciam uma indicação ao Oscar. A trilha esperta de John Murphy é cúmplice e prepara o terreno carregando na dramaticidade pré-pancadaria. Dependendo do tom, sabemos que o tempo vai fechar feio. Isto é ilustrado com maestria na cena que antecede o cerco ao trailer da gangue neonazista. Cena, aliás, que pertence a um ato em três movimentos - o último deles, tracionado por um silêncio de fazer nervo pedir demissão.

É surreal ver que, sem propor qualquer inovação estrutural, Miami Vice faz miséria no mesmíssimo terreno de pieces of shit como + Velozes + Furiosos e Bad Boys 2. Apontar algum destaque isolado no meio de tantos acertos é complicado, mas talvez o tom de seriedade e o fato de que, em nenhum momento, o filme faz pouco caso da inteligência do espectador, sejam um belo ponto de partida. Direcionamento mantido até a conclusão, que reserva a um dos personagens o destino mais verossímil que eu vejo desde o finalzinho de Operação França. Uau.


No playlist: a Vice Soundtrack. Uma ótima seleção. E, claro, os temas clássicos do Jan Hammer - Miami Vice Theme & Crockett's Theme.

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