sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

KILLING IN THE NAME OF


Rambo IV (Rambo, 2008) me trouxe uma certeza que há tempos eu buscava. Sempre achei que se aquele sujeito cabeludo fosse explorado de maneira menos ideológica e mais pessoal, revelaria uma psique em frangalhos. Qual seria a fronteira entre o certo e o errado do ponto de vista de - vamos entrar na brincadeira - um membro da elite das Forças Especiais, arrastado além de seus limites físicos e psicológicos? No mínimo, desfocada. O assunto já rendeu vários longas (Sob o Domínio do Mal, Caçado, Elite Squad) e uma trilogia inteira (Bourne's), e em todos eles os "heróis" estão quase submersos na loucura. Parece ser o que Sylvester Stallone tenta elucidar nesta nova investida de seu personagem mais globalizado. O que antes era um comercial de democracia american way, com o Campeão Bombado da Liberdade surrando a fuça de algum estereótipo comunista/ditatorial em tons coloridos e vibrantes, agora é um retrato sombrio e visceral. Fica claro que as novas motivações de John Rambo, personificação da América coerciva que é, vêm com um amargo, decepcionado e arrependido desencargo de consciência.

O roteiro, de Sly e Art Monterastelli, é bastante econômico, mas sobretudo instintivo. Foi preciso apenas um "Fuck The World" para traduzir em termos o que sentia um cara que: foi hostilizado por aqueles que defendeu na guerra; foi abandonado por suas fileiras em território inimigo; e que - mais uma vez salvando o traseiro da América da ameaça comunista - ajudou talibãs e futuros terroristas a reinarem soberanos no Afeganistão, sem imaginar a merda que isto iria render um dia. Então, nada mais pragmático num mundo em que os caras maus não andam por aí com uma marca vermelha na testa - desde que você tenha A Bomba, claro.

A própria imagem do protagonista remete ao atual estado de espírito desta Velha América. Longe daquela forma e agilidade de iron-man, Rambo agora é um farrapo triste e austero. E novamente refugiado entre nativos de uma região isolada, o que é curioso, dada sua proximidade com uma zona de guerra - detalhe que parece sempre estar presente em suas escolhas de moradia (tenho certeza que isto renderia outra elucubração psico-geopolítica de boteco, mas deixa então pro boteco). O início do filme dá uma boa idéia do clima de pesadelo que domina a área. Ao invés do Tio Sam, desta vez é um grupo de ajuda humanitária quem pede auxílio ao velho soldado. Após vários avisos, Rambo concorda em transportar a equipe com seu barco para "além da linha vermelha" - mas não pela ilusão de estar mudando o mundo com isso, e sim convencido pelo discurso/semblante deslavadamente Madre Teresa da missionária Sarah Miller (Julie Benz, de Dexter).

Durante a viagem, eles são abordados por piratas que querem raptar Sarah. O ex-boina verde se vê obrigado a trabalhar e dá uma aula de como não se faz prisioneiros. Ao ter seus métodos questionados por um dos médicos da missão, ele agarra seu pescoço e metralha: "They would've raped her 50 times and cut your fuckin' heads off! Who are you? Who are any of you?" Esse é o clima.


Apesar de chocado com o episódio, o grupo decide continuar, cheio de boas intenções e nenhuma arma na bagagem. Não demora até um pelotão carniceiro de militares birmaneses entrar de sola na vila que está sendo amparada. É neste momento que somos apresentados ao Rambo pós-Pulp Fiction, pós-O Resgate do Soldado Ryan, pós-Falcão Negro em Perigo, pós-Hostel, pós-Viagem Maldita. Desde o seqüestro do Cel. Trautman, foram quase duas décadas de chafurdações NC-17. E vieram com juros. Bancários.

Quando respondeu as críticas que afirmavam que Rambo IV é um dos filmes mais violentos já feitos, Stallone declarou: "Not one of the most. The most. I worked very hard for this". Sendo assim, ele pode se orgulhar da cria - a seqüência da vila é incomodamente longa, de um grafismo brutal e sádico. Pessoas são desmembradas com rajadas de balas, explodidas, incendiadas, mulheres são violentadas, crianças são mutiladas. É chacina filmada de trás das trincheiras. Tão realística, crua e desesperadora quanto foi no aterrador Savior - A Última Guerra (Savior, 1998). Um soco na boca do estômago.

Muito se discute sobre o que é justificado ou não em cenas de violência extrema no cinema. Neste caso específico, tenho certeza de duas coisas: 1) Sly escolheu a dedo o cenário de crise que iria abordar (ano passado, a isolada Birmânia/Myanmar se revelou a nova filial do capeta na Terra), talvez até contribuindo para a denúncia em outros meios; 2) Era a lenha necessária para a fogueira de Rambo. Em nenhum dos filmes da série os antagonistas se mostraram tão revoltantes. Neste sentido, há uma grande sacada do Sly-diretor ao transformá-los em agentes impessoais, produtos de um sistema maior que jamais caberia em 91 minutos de celulóide (lembrando muito o caos sócio-político de O Sobrevivente, de Werner Herzog). Um bom exemplo é a inclusão dos insurgentes Karen na reta final (mais rebeldes? Oh-oh...).

O militar anônimo que lidera o pelotão birmanês, o Vilão per se, não é nenhum General Kurtz e quase se confunde com seus subordinados - diferente dos oficiais do alto escalão dos filmes anteriores, verdadeiros aristocratas de fardas impecavelmente engomadas fazendo a revista semestral nas latrinas de seu exército. Consumindo cigarros tediosamente enquanto aldeões são massacrados, aos poucos ele revela um perfil simplório. Institucionalizado, unidimensional e, curiosamente, gay e pedófilo.


Acho que é evidente que Stallone está se tornando um diretor bem interessante. Pelo menos, muito melhor que a maioria dos que já o dirigiram. As cenas de guerra são frenéticas e orquestradas com esmero, sem os vícios action hero típicos, incluindo o nuke de bolso improvisado (uma mina Claymore plantada no pé de uma bomba Tallboy da 2ª Guerra). As nuances dramáticas são breves e sugestivas, balanceando o que Stallone quer fazer com o que ele consegue fazer. Sua abordagem não poderia ser mais sóbria e consciente. Um homem beirando a 3ª idade (06/06/1947) cujo percurso traumático há tempos arrancou sua sanidade dos trilhos - no clímax de um pesadelo, Rambo é morto pelo Cel. Trautman, em alusão à cena deletada do filme original, constante no livro no qual foi baseado.

E pela primeira vez, Sly dá um passo em direção às suas origens, sinalizando positivamente o destino do personagem. Provavelmente o que seria a próxima parada de John antes de ser detido pelo Xerife Will, há 26 anos atrás. Promissor...

Trilha de operações: RATM, Neil Young, AC/DC, Black Sabbath. Nada de "Let The Bodies Hit The Floor".

6 comentários:

Alcofa disse...

Cara...

John Rambo é o filme badass do começo do ano...

sem mais comentários.

E teve gente que viu e me falou: é violento demais.

E eu respondo: deveriam fazer um filme com esta mentalidade do Duke NUkem ... hauhduheuhaua

abração!

Sandro Cavallote disse...

Nunca fui muito fã do Rambão ae... mas depois de ter lido essa resenha, vou ter que conferir.

Kalunga disse...

idem ao Sandro, ainda que o primeirão da série seja de meu agrado e uma cutucada numa ferida da América.

Mas, na boa, todas as críticas que eu li até agora em órgãos de imprensa davam conta justamente de um Rambo cansadão e de um filme (muito) violento e desnecessário.

Mas tua resenha despertou a atenção para detalhes e siginificados que eu não li por aí na mídia em geral, e justamente por isso vou assistir à película para emitir uma opinião mais embasada - pois até passar por este blogg, não tinha a menor intenção de gastar meu suado dinheirinho num cinema sem carterinha falcatrua de meia-entrada, hehehehe...

abração e bela resenha!

doggma disse...

Alcofa: violento e, infelizmente, realista neste aspecto. E porra, Duke Nukem? Quem dera!!

Ramdro = nem o 1º tu curte?

Kalungaaa!! >> cara... seguinte: depois do 1º (antológico) é o melhor da franquia, pra mim. E "cansadão" ele tá, mas cansadão da vida, do sistema, do mundo. Só tem segunda-feira no calendário dele. Após a bilionésima traição, o cara tá exalando revolta - mas o final guarda algo próximo de uma redenção. Tinha um subtexto ali, mas preciso debater com alguém pra chegar em algum lugar.

Ps.: esqueci de comentar que, em determinados momentos, o filme me lembrou "Holocausto Canibal"!

Anônimo disse...

Eu fico imaginando o quão providencial seria uma nova carona no desfecho, preferencialmente pelo próprio Will Teasle (aposentado) ou de um "neto" - representando outra mentalidade... pra melhor, já que o tom é mais otimista que 'First Blood'.

tha disse...

Olá!

Como eu sempre gosto do q vc tem a dizer sobre filmes, te indiquei para um MEME.
5 filmes subestimados: listar 5 filmes que vc considera terem sido subestimados pela crítica e/ou público.

bjs!