quinta-feira, 5 de janeiro de 2012
A day at the races
Certa vez me atrevi a jogar umas partidas de dominó com uns coroas numa espelunca com cerveja a preço de custo. Até ali, pra mim, o inocente joguinho era apenas um entretenimento evasivo, motorizado pela sorte. Ledo engano. Os amigos, todos profissionais de boteco 24/7, sabiam quais peças eu tinha, quais eu precisava e quais estavam no banco. Isso já na primeira rodada. Particularmente irritante era o hábito que tinham de "adivinhar" com qual peça eu iria jogar. Mais ainda, me forçavam a jogar as peças específicas que eles queriam, me fazendo afundar no banco. A carroçada foi inevitável. Graças a Deus não era a dinheiro e aqueles camaradas não eram da máfia russa. Claro, depois fui saber que existem várias modalidades de jogo, estratégia, uma matemática aplicada simples e que eu era um peregrino numa terra pagã.
É um universo com uma física à parte e duas leis soberanas: nada é o que parece e sorte é a gente que faz. Isso se estende por outros jogos de forma mais evidente, como no pôquer, ou quase totalmente insuspeita, como nas apostas em corridas de cavalos. Pelo menos, foi isso que vi no piloto de Luck. Uma completa desmistificação.
As credenciais impressionam. Luck é a nova série da HBO. No elenco, Nick Nolte, Dennis Farina, John Ortiz e Kevin Dunn. Dustin Hoffman protagoniza e produz. O piloto foi dirigido por Michael Mann e escrito por David Milch (Deadwood), criador da série.
A trama acompanha um dia na vida de várias pessoas em posições radicalmente diferentes e todas interligadas por um grande esquema nas corridas. Hoffman faz um figurão do crime organizado recém-saído de uma estadia de 3 anos na cadeia e que agora volta à cidade para reassumir seus negócios. Farina faz seu motorista e assistente, talvez a figura mais próxima de um amigo. Pouco foi entregue sobre o amargo personagem de Nick Nolte, apenas que é um treinador veterano com um passado traumático envolvendo a morte de um cavalo campeão. John Ortiz, por sua vez, é dono de um estábulo e tem um cavalo de altíssimo rendimento, mas condicionado para correr mais devagar nas prévias (tornando-o assim um azarão de ouro pra quem tem a informação). E Kevin Dunn faz parte de um pequeno grupo de apostadores inveterados, do tipo que come, bebe e respira no hipódromo.
O piloto dá várias pistas sobre o que vem a seguir - e que provavelmente não corresponderá à expectativa de quem vê esse dream team cinematográfico. A trama não vem mastigada pra quem não conhece o mundo das corridas, a construção é lenta e metódica, não há qualquer alívio em termos de informação e o ritmo narrativo não faz média com o espectador. É roteiro de gente grande. E gente grande da velha escola. Uma segunda assistida se faz bastante oportuna, mas a premissa é cristalina no que quer entregar: apesar do nome, Luck não tem nada a ver com sorte.
O núcleo formado por Dunn é dos mais promissores - particularmente o personagem de Jason Gedrick (bem distante de seus tempos de Águia de Aço), um apostador de olho clínico que poderia ser um peixe grande, não fosse seu vício nas cartas. Dennis Farina está sensacional como sempre, bem como John Ortiz, um pilantra ganancioso de marca maior. Já Nolte, que novidade, passa a maior parte da história completamente impenetrável. Mas a velha raposa sabe o que faz. Assim que solta uma ou duas falas mais intimistas, traz de volta o espectador que estava quase desistindo de seu personagem, em velocidade de dobra. Timing elevado ao status de arte.
Quanto à Dustin Hoffman, me abstenho de qualquer análise. Não é pra mim. O que esse colosso faz em cena deveria ser isolado, estudado, catalogado e conservado em laboratório para as gerações futuras chegarem a um consenso razoável. Magnetismo irresistível, potencializado por uma carreira com um índice ridículo de concessões e equívocos. Quando ele fala, você cala a boca e presta atenção. Quando não, também.
A direção de Michael Mann é soberba, só pra variar. Com o recurso da ação bastante reduzida para seus parâmetros, o cineasta direciona suas lentes para as engrenagens do sistema. Num registro meio candid camera temos um intensivão de como flui o capital pelos bastidores. Quem são os incautos casuais que acham que aquele pode ser seu dia de sorte, quem são os apostadores que jogam pra ganhar e quem realmente ganha dinheiro ali, chova ou faça sol. O tom é de denúncia, em paralelo com o Oliver Stone de Um Domingo Qualquer, mas não fica só nisso. Nas cenas que antecedem as corridas e as corridas propriamente ditas, Mann chuta a lata e entra em seu modo cinemascope.
Nunca vi uma corrida de cavalos filmada desse jeito, in loco. As cenas são absolutamente eletrizantes, poderosas, viscerais. Eu diria até que são majestosas, em uníssono com a elegância absurda dos animais - o que é surpreendente pra mim, vindo de um esporte que não me dizia nada até a semana passada. A forte sensação de que aquilo realmente está acontecendo ali chega a ser desconcertante. O lugar daquelas sequências não deveria ser outro senão no maior IMAX 3D disponível neste planeta.
Um atrativo de peso que não sei se será repetido nos próximos episódios. Se não, pouco importa, ganhamos de qualquer jeito. Os dados já foram lançados. E Dumbledore está vindo aí...
Luck estréia no dia 29 de janeiro.
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3 comentários:
Vi o piloto no ano passado (duh!) e gostei bastante também, a parte das apostas fiquei boiando em uma ou outra coisa e achei aquela cena do Dustin Hoffman arrancando a camisa um tanto quanto cômica.
Pelo que entendi no teu texto, a temporada toda vai se passar em um dia, é isso?
Aliás, vendo esse seriado fiquei lembrando constantemente daquele filme do Richard Dreyfuss: A Grande Barbada, que tudo ele fica fazendo contas e o amigo até doa sangue para conseguir dinheiro para aposta.
Cara, baixou onde?
Ainda tá acompanhando o reboot da DC? A cada mês diminuo o número de download... Action Comics 4 foi horrível =P
Abraço!
Raid, só o piloto se passa em um dia. No texto é que ficou meio confuso mesmo. :) Esse filme com o Dreyfuss é legal. Preciso rever. E também o "Cartas na Mesa", com Matt Damon e Edward Norton.
Do Vale, fui de torrentlândia mesmo (Kick Ass Torrents). Quanto ao "novo universo DC" tô meio que pedindo a conta também.
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