Em meados de 1989, Leandro Luigi Del Manto, então editor de quadrinhos na Abril, foi convidado para uma conversa no escritório de Eduardo Macedo, na época, diretor comercial na editora Globo. Não houve muito rodeio — "estamos abrindo uma nova redação de quadrinhos aqui na Globo e precisamos de alguém que cuide do material não infantil. Você tem interesse?". E veio a pergunta de 1 milhão: "o que vocês estão pretendendo?"
Após um incisivo "olha, vou abrir o jogo, mas não pode sair daqui", Macedo tira de uma gaveta pilhas e mais pilhas de HQs. Os olhos de Del Manto quase saltaram das órbitas: estavam ali Akira, Sandman, V de Vingança, Orquídea Negra, Demônio da Mão de Vidro, Marada: A Mulher-Lobo, a minissérie do Pantera Negra e vários outros títulos. A negociação conclui com um "quanto vou ganhar e onde é que eu assino?"
É uma das minhas histórias favoritas dos bastidores do mercado nacional de quadrinhos.
Essa investida da Globo reformulada foi, de certa forma, um divisor de águas. Não foi a gênese do quadrinho adulto no Brasil, mas, sem dúvida, modernizou e expandiu o conceito para um modelo editorial que perdura até hoje.
Logo foram chegando títulos como Dreadstar, Moonshadow e O Último Americano. Todos da Epic Comics, subdivisão da Marvel lançada pelo editor Jim Shooter e que operou entre 1982 e 1996. Filhote da memorável Epic Illustrated, o selo se destacava por oferecer aos quadrinistas liberdade total nas histórias, além da almejada propriedade sobre suas criações — um tremendo arrojo em se tratando da Casa das Ideias.
E o 1º título Epic publicado pela Globo foi A Guerra de Luz e Trevas, estreia da parceria do escritor Tom Veitch com o desenhista Cam Kennedy.
A história — uma saga aventuresca nos moldes clássicos — é uma jornada pelos gêneros da guerra, da fantasia e da ficção científica sob a ótica bastante peculiar de Veitch. A HQ já abre com duas linhas temporais simultâneas, com o veterano Lazarus Jones visitando um memorial de guerra enquanto relembra sua última e trágica missão no Vietnã, quando uma emboscada vitimou sua unidade e ainda lhe arrancou as duas pernas. Tomado pelo transtorno do estresse pós-traumático com ênfase na síndrome do sobrevivente, Laz é incapaz de viver o tal sonho americano pelo qual viu tantos serem sacrificados.
As coisas mudam após um grave acidente de carro. Mais uma vez ele sobrevive, porém em coma profundo num leito de hospital. Preso em um estado espiritual intermediário, Laz é confrontado por um ser sobrenatural que o apresenta ao Portal Negro, um mundo localizado no sistema estelar Abraxas. Lá, é travada uma guerra milenar entre as forças da Luz e das Trevas. Uma guerra para onde são cooptadas todas as almas dos soldados mortos em combate — justamente onde estão seus saudosos irmãos de armas Slaw, Huff e Capitão Engle desde que desencarnaram naquele fatídico dia no Vietnã.
O Portal Negro é um posto avançado da Galáxia da Luz, sendo o território de maior disputa entre as duas forças. Do lado da Luz, está Urumm, também chamado de A Fonte. Do lado das Trevas, está o Senhor Oculto. Suas forças militares são lideradas pelo tirânico Lorde Na, cujos poderes de conversão deram origem aos Deadsiders, um gigantesco exército de guerreiros demoníacos espalhado por quase toda a galáxia.
É neste contexto básico — mas com desdobramentos bastante intrincados — que Laz e a autointitulada Gangue da Luz buscam a diferença que significará a vitória (ou a derrota) decisiva. Se é que aquilo tudo é mesmo real, no final das contas...
Sobre os desdobramentos intrincados, não é força de expressão. Veitch criou um universo vasto e riquíssimo, com várias soluções inusitadas para evitar o lugar-comum.
Um exemplo é no início, quando Laz chega ao Portal Negro e vê seus velhos amigos combatendo Deadsiders com indumentárias e armamentos remetendo aos séculos 16 e 17. As circunstâncias naquela galáxia eram ainda mais primitivas, quando houve um salto tecnológico a partir do ano 1519 terrestre. Não por acaso, o ano do falecimento de ninguém menos que Leonardo da Vinci. Tendo trabalhado como arquiteto e engenheiro militar para os Bórgia, Leonardo também projetou várias fortalezas e instrumentos bélicos, o que lhe rendeu uma passagem só de ida para aquela guerra.
O polímata italiano foi o primeiro a explorar o potencial dos Menteps, criaturas azuladas ligadas diretamente à Fonte. Além de um grande alcance telepático, esses seres têm o poder de levitar e acelerar qualquer objeto à velocidade da luz. Assim, eles passam a usar essa capacidade nas imensas belonaves de pedra utilizadas pelos soldados da Galáxia da Luz.
Contudo, mesmo sendo um pioneiro e visionário, Leonardo ainda era limitado à perspectiva de seu tempo.
Dessa forma, naquele continuum (ou, como Cam Kennedy gosta de dizer, naquele "plano temporal alternativo"), toda a evolução tecnológica e cultural estagnou por volta do ano 1700 em padrões de tempo terrestres.
Outro gênio a aportar na Galáxia da Luz foi o revolucionário inventor e engenheiro Nikola Tesla, falecido em 1943. Em Abraxas, o controverso cientista enfrenta o protecionismo quase dogmático ao redor das criações defasadas de Leonardo. Pressionado pelo Conselho da Conferência Galáctica, ele passa a trabalhar numa "Máquina de Destruição" (vulgo seu-2º-Raio-da-Morte). Enquanto isso, Nicholas Tesla, seu neto (ficcional), inadvertidamente desenvolve na Terra um dispositivo capaz de abrir um portal para aquela dimensão. E essa é só a ponta de Taa II.
A Guerra de Luz e Trevas é uma convergência das influências literárias com as experiências pessoais de Tom Veitch. Antes de se tornar escritor e quadrinista, ele viveu na clausura como monge beneditino por alguns anos. Suas convicções espirituais sempre estiveram presentes em suas obras e ressoaram ainda mais intensamente nesta HQ. Além dos generosos apêndices entre os capítulos e das referências espertas, Veitch inseriu versículos de uma "Bíblia Mentep", fornecendo mais pistas sobre as origens daquele universo.
Na trama, essa característica é explorada até ao ponto em que os mundos físico e espiritual passam a interagir nos dois sentidos. Fora todo o processo cármico dos espíritos de soldados humanos servindo como reforços de guerra num mundo espiritual, em dado momento, as forças da Luz e das Trevas são atualizadas com o arsenal bélico da Terra dos dias atuais. Nada mais natural: se há algo em que somos muito bons é em espalhar sofrimento e destruição em larga escala.
Uma premissa que parece ter servido de base para o filme Anjos Rebeldes (The Prophecy, 1995), em que anjos disputam a alma de um recém-falecido coronel veterano da Guerra da Coreia. Uma alma tão vil e cruel que é considerada pelos seres celestiais como a "alma mais sombria da Terra" e que pode decidir os rumos de uma guerra civil no Paraíso.
Além da espiritualidade, outra grande influência de Veitch era Tolkien. Enquanto Urumm/A Fonte é uma entidade ou força análoga ao Deus cristão, Lorde Na e o Senhor Oculto são análogos a Saruman e Sauron, de O Senhor dos Anéis — e os Deadsiders, swipes fáceis dos Uruk-Hai.
Mas Veitch não ficava apenas no plano abstrato e construía metáforas tristemente atuais ao mundo real. Mesmo com todo o poderio bélico à disposição, Lorde Na e seus minions excursionam pelas províncias sitiadas proferindo um discurso de ódio, violência e morte. Tudo isso enquanto "converte" populações vulneráveis em apoiadores-zumbis, exarcebando as táticas fascistas de controle como um típico autocrata das trevas.
É uma aula o modo como Veitch consegue abordar as questões mais espinhudas da discussão política sem sair do campo da alegoria.
A arte de Campbell "Cam" Kennedy é estonteante. O escocês passou a década de 1980 imerso nas linhas de produção da 2000 AD, especialmente nos títulos Judge Dredd e Rogue Trooper. Em A Guerra de Luz e Trevas, seu traço bebia na fonte de mestres como Gil Kane (na pegada detalhista), Sergio Toppi (vestimentas, expressões culturais multiétnicas) e Walt Simonson (construtos diversos, como naves, edificações, armas). Dinamismo, páginas duplas e takes panorâmicos das batalhas de tirar o fôlego.
A palheta de cores curtida em tons oitentistas se intermediava com um naipe de técnicas, belíssimas passagens de pinturas a óleo e aquareladas — reflexo da aversão do artista pelas colorizações digitais, prática que já se popularizava na época. Kennedy, que sempre detestou ser arte-finalizado por terceiros, fez tudo. O homem não era brincadeira.
Veitch e Kennedy sabiam o que tinham em mãos. E, mais importante, souberam vender o projeto. O próprio Archie Goodwin ficou tão fascinado pelo conceito que ele próprio se encarregou da edição da série ao invés de delegar para outro.
George Lucas gostava tanto de A Guerra de Luz e Trevas que entregou nas mãos de Tom Veitch a nova fase do Universo Expandido de Star Wars. O escritor, que não era bobo, tratou de convocar o amigo Cam Kennedy para repetir a parceria na nova empreitada — e seu grande fruto até hoje é bastante celebrado e discutido entre os fãs: a trilogia Império Negro.
Uma das duplas mais memoráveis das HQs
A conclusão sugestiva confirma uma sensação presente durante toda a leitura: as ideias de Veitch para aquele universo eram grandiosas demais para uma simples minissérie. Ele definitivamente não tinha terminado com o universo de A Guerra de Luz e Trevas.
Mas isso é algo que nunca mais saberemos.
Referências:
Entrevista com Tom Veitch
Entrevista com Cam Kennedy
Artigo na Amazing Heroes
2 comentários:
Esse material é ouro puro!
Precisa de uma republicação decente pra ontem.
Tenho a mini solta aqui em um das minhas infinitas caixas de comics, mas é um material que me lembro bem, marcou demais. Arte sensacional, história que deu nó na cabeça durante os 80s.
Sinto falta desse tipo de ousadia hoje em dia.
Merecia uma republicação mesmo, Alexandre. Saiu lá fora em 2015 via Titan Comics. Quem costumava publicar material deles aqui era a Mythos. Tomara que a editora (ou a P&N, Devir) relance um dia... antes que alguém abra um Catarse com entrega pra 2038...
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