sábado, 11 de setembro de 2004

A 14ª GUERREIRA


Essa foi a imagem que mais marcou a minha memória, após a sessão de A Vila (The Village, 2004), a nova incursão do diretor e roteirista M. Night Shyamalan. A cadeira vazia foi a única testemunha de uma declaração de amor de verdade, sem falsa pose ou frases feitas para impressionar. Na verdade, muitas vezes, declarações de amor de verdade passam longe de convenções "românticas". Elas ficam mesmo parecendo uma espécie de desabafo. E isso é ótimo, pois se você não conseguir nada, pelo menos tira aquele "peso" da consciência. :P

Após meses de intenso hype, é improvável que alguém desconheça a premissa de A Vila, pero... A história se ambienta em um vilarejo isolado, que lembra por demais uma comunidade amish. Totalmente auto-sustentável, ela independe de qualquer contato com a cidade, o que é quase uma benção: no bosque que cerca a vila, habitam misteriosas e mortais criaturas. Como forma de coexistência, os habitantes da vila e as criaturas mantêm um pacto silencioso de não-intervenção. Ninguém invade a área de ninguém, senão o bicho pega (literalmente). A situação começa a sair dos trilhos quando são encontrados animais silvestres esfolados nas imediações da vila, ao melhor estilo chupa-cabras. Um belo dia, as criaturas resolvem fazer algo mais, e deixam uma mancha vermelha na porta de cada casa, marcando assim o fim da trégua.

Shyamalan é atualmente o melhor criador de atmosferas (de suspense ou não) do Cinema, ao lado de David Fincher e Alejandro Amenábar. Sua câmera atua do ponto de vista do espectador, como se ele estivesse ali fisicamente acompanhando os acontecimentos. E essa característica atinge seu auge justamente nos momentos de maior tensão, quando algum personagem se encontra em alguma situação complicada e/ou desesperadora.

O recluso William Hurt comparece aqui no papel de Edward Walker, um tipo de líder comunitário da vila. Responsável, paternalista e, ao mesmo tempo, amargurado, como se estivesse carregando o mundo nas costas. Hurt está ótimo, como sempre. O breve diálogo entre Edward e Alice (Sigourney Weaver, discreta), na cozinha, é um dos momentos mais subjetivos já filmados nos últimos 10, 15 anos. Foi uma aposta arriscada de Shyamalan, mas diga-se de passagem, ficou soberba. Adrien Brody, o gaiato que lambeu a goela de Halle Berry na premiação do Oscar, faz o papel de Noah Percy, que é um puta personagem trágico e imprevisível. Henrique V perde. Um belo trabalho.

Joaquin Phoenix recebeu uma das missões mais difíceis da sua carreira. Seu personagem, o homem-sem-medo Lucius Hunt, é o terror dos atores que não sabem atuar de boca fechada. Austero, hiper-introspectivo e reservado, Lucius é, antes de tudo, um bravo que não teme por si, e sim por aqueles que ama. Phoenix está crescendo à olhos vistos, e essa é a sua melhor atuação desde 8MM (Max California, seu personagem lá, foi a única coisa boa do filme). Não vai demorar muito até a "grande chance" bater à sua porta.

Diante de um elenco desses, é uma surpresa que o destaque seja a novata Bryce Dallas Howard (filha do Ron), no papel da cega Ivy Walker (filha do Ed). Com poucos filmes no currículo, ela fez juz à confiança que Shyamalan depositou nela. Ivy é sensível, forte e independente, e sua jornada quase quixotesca é a representação dos valores que fazem dela uma pessoa especial. E bonita. E sim, estou apaixonado por ela. Vou anotar seu nome na minha lista, logo depois de Scarlett Johansson, Keira Knightley e Evan Rachel Wood. :)

Mesmo com uma linha principal intensa, o argumento do filme faz certos paralelos de maneira elegante e sem se render ao panfletarismo barato (o que prejudicaria a narrativa). Além das observações às políticas do medo e do intervencionismo (bosque e criaturas), tão em voga atualmente, A Vila não fica só aí e cria subcontextos, que, se parecem incompletos à primeira vista, é porque simplesmente foram realísticos. Afinal, o tão almejado "final feliz" não se encontra em qualquer esquina (Edward/Alice e Noah). O que não quer dizer que você não possa lutar por ele (Ivy/Lucius).

Poucas vezes um filme suscitou tantas opiniões radicalmente opostas - e de pessoas cujas opiniões eu respeito, incluindo-se aí escritores de sites, blogs, revistas e jornais.

Vou poupar o trabalho e colocar o clímax no começo. Sabe qual o problema de A Vila? O seu público. Que por acaso não é o público do filme, e sim o público do diretor, em sua maior parcela. O apreciador médio do "mesmo-cara-que-fez-O-Sexto-Sentido" foi ao cinema mais armado que Zé Pequeno e Tony Montana juntos. E que soem as trombetas, pois o estrondoso final-reviravolta acontecerá a qualquer momento. Tem que acontecer. O público precisa da sua dose Shyamálica de finais imprevisíveis pelo menos uma vez a cada dois anos. Sem querer, Shyamalan criou um monstro, e um monstro mal-acomodado ainda por cima.

E o coral de críticas negativas? Cada vez mais, a minha impressão é de que algo aconteceu lá no começo que prejudicou todo o subseqüente julgamento do filme pela opinião pública. Se fossem opiniões amenas, passaria batido, mas não. A Vila simplesmente despertou o Hulk Ultimate que existe nas pessoas. Ninguém achou o filme "mais ou menos" e sim de detestável pra baixo, em sua esmagadora maioria. Sem meio termo.

Eu, sinceramente, me senti em uma dimensão paralela nessa última semana. Eu sou o próprio Bizarro, e estou num universo onde 90% da população nutre um ódio profundo ao filme A Vila e ao seu diretor. Mas 90% não é 100%. Pra mim e mais alguns poucos, é tão claro o brilhantismo desse filme, quanto ele é péssimo na opinião dos detratores. Nenhuma das críticas conseguiu me convencer de que esse é um filme menos do que excelente.

E digo mais: muito provavelmente A Vila não será justiçado com o tempo. Se não há a capacidade de enxergar a sua beleza simplista agora, isso dificilmente acontecerá no futuro.


dogg, que só comentou sobre o filme pra registro, ao som de I'll Hate You Better, do Suicidal Tendencies. E que coincidência! O nome da música tem tudo a ver com a polêmica que cercou A Vila...

Nenhum comentário: