terça-feira, 10 de janeiro de 2006

HOJE EU ME SINTO MENOS HUMANO


O cinema às vezes é menosprezado quando colocado na balança contra outros veículos culturais. Estou acostumado a ver o pessoal dito "mais culto" (ou os que querem posar de) colocar que o teatro é algo tão acima desta coisa mundana onde o cinema chafurda que até penso se não era para eu me sentir culpado por adorar tanto aquela telona! Não nego que, dada a natureza eminentemente autoral dos palcos, contrastando com a maioria esmagadora de blockbusters do cinema americano, realmente faz com que a idéia tenha lá seu quê de lógica, mas seria uma tremenda falta de respeito – para não dizer cegueira voluntária – com todas aquelas obras tão autorais quanto e que ficam ombro a ombro com outras que usam bem o poder de criação de realidades para passar algumas mensagens só possíveis no cinema.

Já há algum tempo, vivendo numa cidade grande como a minha – e que não é diferente em absoluto da cidade grande que você aí e você também vivem – passei a perceber que o respeito pelo próximo e pelo próprio corpo/vida têm se transmutado em descaso. A vida alheia tem se mostrado cada vez mais descartável, trazendo como conseqüência a falta de entendimento que as dificuldades do seu vizinho podem vir a se tornar suas também. Ninguém passa incólume por isto, nem eu. Quando garoto, costumava ir a pé para o colégio e sempre passava em frente à banca de jornal perto de casa. Nesta época, o jornal O Povo (um diário do Rio de Janeiro, não sei se em outros estados também circula) começava com suas edições de certa forma inovadoras: as capas sempre traziam uma manchete praticamente medieval que acompanhava uma foto de meia página de algum cadáver chocante ou pedaço de, sendo que o recheio do tablóide não era diferente. Praticamente dava para torcer o jornal e encher um copo de sangue. A quantidade de pessoas que parava em frente à banca para ver aquela imagem não fazia frente nem à quantidade de crianças na porta das casas no dia de São Cosme e Damião. O horror contagiava e continua contagiando. O tempo passou e as percepções também. Naquela época, as pessoas ainda se sensibilizavam com um assalto ocorrido na esquina. Hoje, se um arrastão tiver passado na mesma esquina e largado alguns corpos pelo chão, não haverá sensibilização alguma além de um: "é... de novo".

Como disse mais acima, ninguém passa incólume por isto. Nem eu. Amadureci e continuei convivendo com a violência – não nego que gosto de alguns filmes violentos, mas estes trazem a idéia inequívoca de ficção. Folheava a parte sobre "O Mundo" do jornal e via aquelas fotos de refugiados indo daqui pr'ali: Etiópia, Libéria, Bósnia, Albânia, Palestina etc. Eram apenas fotos de jornal acompanhadas de, no máximo, 40 palavras. Ocupavam meu tempo apenas enquanto não mudava para a página dos esportes. Achava que tinha perdido a capacidade de me sensibilizar, de me indignar.

Graças a Deus o cinema não é tão vulgar quanto pregam aqueles do começo do texto. Ontem vi Hotel Ruanda (Hotel Rwanda, 2004 – EUA, Itália, GBR e África do Sul) e confirmei que a sétima arte consegue fazer-me perceber que ainda sou capaz de sentir algo que transcende o entretenimento barato. O filme, dirigido pelo estreante no cinema Terry George, é baseado em fatos reais vividos e contados por Paul Rusesabagina, encarnado primorosamente por Don Cheadle. Sabe quando temos aquela sensação de legitimidade quando nos deparamos com ela? É mais ou menos isto! Nunca vi o tal Paul, mas a sensação que tive durante o filme é que o cara deve ter sido tão bem encarnado quanto foi Ray Charles por Jamie Foxx (não por acaso, foi seu algoz no Oscar passado).


E Paul nos conta que em 1994 ocorreu uma guerra civil na Ruanda entre as duas castas que habitavam o país: a maioria Hutu contra a minoria Tutsi. Conta também que, quando da colonização, os belgas, naquele afã de controlar o país tendo alguém nativo ao seu lado que seja o menos diferente possível – e de quebra criando um racha humano que sempre favorece o controle pelos colonizadores – pescaram dentre a população aqueles com nariz mais afilado, maior estatura e fisionomia mais delicada, ou seja, o mais próximo possível do padrão europeu, mas negro. Chamaram estas pessoas – minoria, cabe reforçar - de Tutsi e os colocaram para mandar no país do restante Hutu – os baixinhos de nariz achatado. Todos sabemos que se um irmão é tratado com privilégios que outro não tem, fatalmente brigas virão; o que dirá de uma nação fragmentada desta forma? A carnificina seria questão de tempo, e aqui estamos falando de números como 40 mil corpos encontrados em um lago e 1 milhão de ruandeses assassinados nas ruas. A título de comparação, a 2ª Guerra MUNDIAL matou 6 milhões de judeus.

"Quantos atos genocidas são necessários para haver um genocídio?"

Então a frase acima, proferida em um programa de rádio, seguida de respostas escorregadias de uma entrevistada européia das Nações Unidas, nos acorda com um tapa na cara. A vida humana passa então a ser uma questão de interpretação de expressões oficiais que os países ditos desenvolvidos – comandantes da ONU – torcem ao seu bel prazer, de preferência para onde dá mais votos – como disse o personagem de Nick Nolte, com aquela interpretação insossa de sempre.

É nesta hora que a pessoa que ainda guarda um pouco de dignidade encontra-se perguntando: "Como é que não fizeram nada? Como deixaram aquilo tudo acontecer sem ninguém se meter? Cadê a tal da luta pela garantia de liberdade? Como podem invadir um país em busca de armas fictícias de destruição em massa ao lado de campos de petróleo e deixar uma estrada inteira ser pavimentada com corpos a perder de vista feitos na base da faca?" - e somos lembrados que na mesma época a Bósnia era violentada e estampava os jornais. Mas ao menos a Bósnia é européia - dá ibope!, diria João Cléber.

O que é relatado no filme foi em 1994, mas se esticarmos o braço para o lado, pegarmos um jornal e apenas o folhearmos, certamente encontraremos algum somali ou angolano numa foto da Reuters fugindo de um campo de refugiados para outro. Todo dia aquilo que o filme mostra acontece novamente, numa repetição incessante que até chega à tela do Fantástico, mas segue-se exatamente como a personagem de Joaquin Phoenix prevê: "As pessoas olham, exclamam 'O Horror! O Horror!' e voltam a jantar".


E aqui vem a mea culpa. Não posso me resguardar atrás do recrudescimento do espírito derivado dos anos de exposição à vulgarização da vida, sob pena de incorrer no mesmo erro da secretária de Hitler em A Queda, quando diz que não há desculpa para este tipo de coisa. O filme é impiedoso. As cenas pungentes se sucediam com eficiência na busca pela derrubada de minha indolência: o contraste do ônibus acomodando brancos retirados do Hotel pela ONU e deixando-o recheado de mortos-vivos, o extermínio de crianças para eliminar uma geração, o fornecimento de armas para o exército pelo governo francês, as cenas de colinas verdejantes com a música alegre do começo contrastando com todo o desenrolar do filme... enfim... tudo. Um país movido a suborno para toda e qualquer atividade não poderia existir sem ajuda do mundo, mas quando ouvimos falar da África? Nunca! Mais da metade das pessoas de nosso país certamente acha que aquilo tudo é selva, da mesma forma que os americanos acham que o Brasil é habitado por Blankas, Pelés e Ronaldinhos que andam por aí balançando-se em cipós. Então o pensamento viaja até a personagem de Rachel Weisz em O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener, 2005) e de como eu já me senti envergonhado vendo o que aquela mulher era capaz de abrir mão em função do próximo, mas minha vergonha vendo Hotel Ruanda tomou proporções absurdas. O que me consola é que Paul, assim como eu, no começo tinha a mesma postura de "as coisas se acertam", até perceber que "as coisas se acertam" só se alguém for o sujeito da oração. Caso contrário, não há como as coisas se acertarem; neste caso não há verbo reflexivo nem sujeito indefinido. Desnecessário dizer que o que aconteceu ali tem chance e caminha firmemente para acontecer aqui se não fizermos nada.

As lágrimas de raiva e vergonha não conseguiram se conter no final, assumo, assim como o punho cerrado. A parte boa disto é que estas lágrimas trouxeram consigo a certeza de que, se hoje realmente me sinto menos humano, ainda consigo manter aqui dentro a sensibilidade para dizer "Porra... eu me importo!" e começar a tentar fazer algo para meu semelhante.

Se tivesse visto este filme uma semana e meia antes, diria que foi o melhor de 2005. Ao menos para mim.

Um comentário:

Professora de História disse...

Prezado,
Vi esse filme ontem e fiquei tão chocada e, ao mesmo tempo, emocionada com a história que cheguei a ter pesadelos de guerra a noite. Gostei muito da sua reflexão, bem como compartilho dos mesmos sentimentos por você expressado. Hoje em sala de aula, tive uma reflexão sobre o cinema de Hollywood e o Oscar sempre concedendo prêmios e glórias aos filmes que tratam do holocausto da II Guerra, mas e o holocausto das guerras na África?
Porque esse filme não ficou tão conhecido e premiado quanto uma lista de schindler? Ao meu ver há um paralelo absurdo entre os dois personagens principais de ambos filmes.
saudações.
Renata