quinta-feira, 26 de maio de 2016

Entre o portador da luz e o dragão


"A Blade of Grass" é uma catarse performática que, com bem pouco exagero, remete instintivamente ao grande William Friedkin. Não o grande Friedkin de O Exorcista ᵖˢ, mas o grande Friedkin do escalafobético Possuídos (Bug, 2006). Pelo bem da regularidade sequencial, a química entre a parisiense Eva Green e o londrino Rory Kinnear não é tão transgressora e agressora quanto a dos yankees Ashley Judd e Michael Shannon, porém... porém... soa igualmente profunda enquanto experiência. O que talvez seja até mais complexo do que enfiar o pé na jaca de uma vez.

Esperto, o diretor Toa Fraser apenas ligou a câmera e colocou as duas usinas de força dramática num set mínimo. O resultado, claro, é um espetáculo soberbo para aplaudir de pé. Mais um.

Imperdoável nunca ter mencionado Penny Dreadful por aqui. Criada pelo produtor e roteirista californiano John Logan, essa Liga Extraordinária dos sonhos está em sua 3ª temporada pelo Showtime e mantendo uma proficiência assustadora. Habitué em grandes produções, Logan tem na série sua investida mais autoral - por ironia, reminiscente das obras do mago de Northampton - e escreve todos os episódios, prática incomum nesse meio de showrunners e screenwriters.

Isso ajuda a conferir uma unidade invejável ao conjunto, além de nivelar tudo por cima. Não há episódios ruins em Penny Dreadful. Menos ainda atuações ruins.


Mas voltando ao capítulo #4 dessa graphic novel em movimento: é o atestado definitivo que mesmo apresentando visões controversas da cultura pop secular a série extrai delas uma poesia irresistível. Dessa vez, a relação íntima entre Lúcifer e o grande protagonista de Bram Stoker foi uma revelação deveras acachapante. E, à primeira digerida, bastante discutível. Por questões de hierarquia mesmo.

Mas numa segunda revisão, logo me veio à mente a graphic Eu Sou Legião, de Fabien Nury, e sua proposta de uma entidade ancestral puxando as cordas no palco mundano desde tempos imemoriais. O famoso Empalador não foi o início e sim apenas mais um veículo.

Promissor e ainda resolve magicamente as coisas na cadeia alimentar inferno-Terra. Graças a Deus.

Ps: ei, mas espera aí... o Friedkin de O Exorcista também, espetacularmente!

6 comentários:

Do Vale disse...

Esse episódio até agora foi o melhor DE TODAS as temporadas. Mas tu não tem medo da série de perder em tanta referência? E qual tua teoria sobre essa relação entre eles 3 e essas mudanças no mito do Drácula?

doggma disse...

O ep. foi um teatro filmado, Do Vale.

A série dá margem para muita coisa e, por isso mesmo, é bem imprevisível. Pode ser um chutão pra cima, mas vamos lá:

Satã e Drácula representam uma dualidade espírito/carne a um passo de uma versão blasfema da sagrada trindade cristã. Vanessa parece ser a peça que falta. Ela é sempre tentada a se entregar voluntariamente, já venceu o demônio mais de uma vez e nem Drácula se atreve a atacá-la diretamente. É evidente que estamos lidando com um padrão bem mais alto aqui. Quem seria Vanessa na verdade?

As alterações no mythos draculesco foram saudáveis, penso eu. Bem mais promissora uma entidade dos círculos inferiores saltando de corpo em corpo através dos tempos (à Parallax/Fênix Negra!) do que uma briguinha entre um aristocrata da Valáquia e o Criador. "Draco" também é o termo em latim para "dragão" ou "serpente" - seres hors-concour na Bíblia, já provendo aí um BG oficioso, ainda que apócrifo, para viagem.

Sobre a série se perder, é uma possibilidade latente desde a primeira temporada. Incrivelmente até agora não aconteceu. E pela conexão que esse último ep. com o Ethan fez com o arco da Vanessa (intercontinental ainda) e desta com o arco de John Clare/Caliban/Criatura, eu diria que John Logan ainda tá no topo de seu jogo.

(se bem que esse foi o 1º ep. da série que ele não escreveu...)

Mas diga aí o que tu acha!

Do Vale disse...

Rapaz, um amigo meu tem esse mesmo pensamento que o teu, de que eles sejam uma TRINDADE MALIGNA. Eu gostei demais dessa interpretação e acho que o John Logan anda conduzindo bem esse arco, já uma amiga cismou com essas mudanças e com essa relação entre Lúcifer e Drácula.
AGORA: Dorian e Lilly ainda não vi muita utilidade, apesar de achar válida essa discussão do EMPODERAMENTO da mulher à época.

doggma disse...

Do Vale, acho que a maioria dos tradicionalistas cismaram com essa "revelação". Prefiro sempre dar um tempo pra ver o que essa situação vai render. Lembro que foi a mesma comoção de fãs do Stoker quando lançaram o cultuado RPG "Vampiro: A Máscara". Lá, Caim (o bíblico) se tornou o 1º vampiro após assassinar o irmão e ser condenado a vagar pela Terra eternamente.

O arco Lilly/Dorian eventualmente deve virar quando o jovem dr. bater à porta dela. A alegoria ao empoderamento feminino (boa!), sinceramente, acho que é apenas pra encher linguiça até lá. Muito lento.

Sandro Cavallote disse...

Não me surpreendi pela presença do Drácula na série (tava até meio óbvio), mas esse contexto em que o colocaram é uma visão nova, pelo menos pra mim. Para um elemento desgastado, acho que deram fôlego.

E esse aí não só foi o melhor da série porque teve aquele S01E03. Ali, sim, bateu forte. :)

Belo texto, cachorro.

doggma disse...

Não seria o S02E03, "The Nightcomers"? Em que Vanessa aprende sobre as artes negras com uma veterana? Esse e "Closer Than Sisters" (S01E05, outro bg da Vanessa!) são o fino da série pra mim.