domingo, 24 de dezembro de 2017

Bebendo com Nocenti


"Bebendo com o Demônio" é, de certo, um conto de Natal que passaria ao longe do know-how criativo do bom e velho titio Stan.

Publicada originalmente em Daredevil #266, num imperdoável maio de 1989, a história ganhou um melhor timing na edição nacional, em Superaventuras Marvel #115, da Abril. Era janeiro de 1992 e a ressaca natalina ainda batia forte. Assinada pela clássica dupla Ann Nocenti-John Romita Jr., "Bebendo com o Demônio" é uma desconstrução daquele clima de paz, amor e solidariedade despejado todo fim de ano em pacotes superficiais e efêmeros.

Com sua vida pessoal em frangalhos e recém-saído de um dos piores momentos - e surras - de sua trajetória de vigilante, o Demolidor estava sem rumo e imerso numa bad trip infernal naquele 24 de dezembro.

A premissa era minimalista: o defensor da Cozinha do Inferno atravessando a noite da maior festa cristã num pub em companhia dos figurantes, dos desajustados, dos caras pequenos, dos outsiders. De todos aqueles amigos da Geni.

Personagens mundanos como uma elegante senhora numa eterna espera romântica, um marido abusivo, um reacionário de meia-idade, dois irmãos que escondem profundas cicatrizes familiares. Todos, por um breve momento, sentindo o gostinho do protagonismo. Que pode ser bem amargo.

“Alguém mordeu a maçã! Ela apodreceu naquele dia!”

Aquele microcosmo impregnado de frustrações, mágoas, angústias e pequenas tragédias humanas foi praticamente um tapete estendido para os leões que rugem na escuridão. Um cenário sob medida para mais uma incursão do diabo-in-chief da Marvel. Na época, Matt Murdock andava às voltas com o insidioso Mefisto por conta do evento Inferno. Àquela altura, a megassaga já havia acabado, mas o rei das trevas não esqueceu.

Disposto a tudo para corrompê-lo psicológica e moralmente, Matt era o 2º grande troféu almejado por Mefisto (sendo o 1º Norrin Radd, o virtuoso Surfista Prateado). Até mesmo a forma assumida pela criatura foi uma pista do que Mefisto era capaz para alcançar seu objetivo - além de servir como alusão a um dos maiores pecados de Matt. Mesmo com a tensão subindo e ruindo tudo e todos ao redor, o vigilante seguia paralisado, inerte com a culpa católica vazando pelos poros.

Nocenti estava implacável com o Demônio.

“Eles se matarão continuamente... sem parar! Morderão as maçãs!
Irmão matará irmão! Continuamente... sem parar!”

É uma leitura marcante, no mínimo. Uma das minhas prediletas.

Sempre me pareceu que uma narrativa com aquele grau de intensidade só podia ser escrita por quem viveu aquilo tudo. Ao menos a versão realística de uma solitária noite de Natal rodeado de estranhos, mas em companhia apenas de seus fantasmas (ou demônios) particulares.

E foi realmente o que aconteceu.


Em 2014, Ann Nocenti contou ao site 13th Dimension como "Bebendo como o Demônio" foi inspirado em fatos reais - e bastante pessoais. Nas entrelinhas, um depoimento de como momentos potencialmente ruins podem se revelar experiências positivas, até mesmo rendendo bons frutos no futuro.

Não precisava disso pra ser uma releitura obrigatória de Natal. Mas que foi a assinatura que concluiu a obra, 25 anos depois, isso foi...


“Pra mim o mundo não tem mais jeito! A maçã está podre! 
Não tem mais volta!”

Feliz Natal e um ótimo 2018.

7 comentários:

lendo à bessa disse...

BOAS FESTAS, MEU QUERIDO!
Ótima lembrança, pena que me desfiz da minha SAM... Seria uma ótima releitura após esse relato da Ann Nocenti.

E o Romitinha fez o melhor Mefisto até hoje.

Vinícius Alves Hax disse...

Eu tinha (ou tenho) em algum lugar essa edição da SAM. Confesso que na época que eu li (too soon) não gostei muito mas hoje mesmo tinha me lembrado dessa história e depois da tua postagem resolvi dar uma outra chance pra ela. E realmente foi uma bela sessão vale a pena LER de novo. Fica ainda mais interessante sabendo a história por trás da história.

O demolidor só se dá mal coitado. Pelo menos quem ganha somos nós, os leitores, com belas histórias.

Abraço!

doggma disse...

E aí, Do Vale!

Por essas e outras que ainda mantenho minhas SAM (e HTV, Hulk, Aranha, etc). Muitas pérolas ali que ainda vão demorar muito para rever a luz do dia.

E assino embaixo sobre o Mefisto do Romitinha - apesar de ter o maior respeito pelo visual clássico eternizado pelo John Buscema.

Abraços!

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Fala, Vinícius!

Nesta época do ano, quando a pressão midiática e o consumismo desenfreado reduzem o elemento humano a um mero detalhe, este pequeno conto do Demolidor fica ainda mais contundente. Leitura natalina de cabeceira - essa e aquela onde ele passa um dobrado numa mansão lotada de armadilhas mortais.

Você tem toda razão: adoramos o Matt, mas que bom que ele só se ferra! rs

É engraçado, também lembro de um punhado de histórias que não curti às primeiras lidas e hoje tenho como minhas favoritas. Acho que é tudo ao seu tempo, mesmo.

Abração!

Marcelo Andrade disse...

Boas festas e boas passagens p/ vc e sua família meu caro e bem lembrado essa passagem...bons tempos e boas histórias que nos puxavam p/ a reflexão.

doggma disse...

Valeu pela presença, Marcelo! Tem aquele ditado... Nas melhores horas o que ficam são as melhores histórias. E os gibis casam perfeitamente com isso.

Abração! Um excelente 2018!

VAM! disse...

Saudações natalinas tardias, doggma!

A contemplação de mais essa enriquecedora postagem na sua data oportuna foi por mim perdida. Assim como a história em que foi inspirada, pois meu conhecimento da Fase Nocentti/Romitinha é cheio de buracos cronológicos.

Mas como acredito nunca ser tarde para salvar a humanidade (que o diga Charlton Heston) que fique então registrado novamente meu pedido para um, desacreditado por muitos, Noel Paninesco o lançamento da CHM DD NC/RM.

Abs,
VAM!

doggma disse...

Fala, VAM!

Pois é amigo, a esperança é a última que morre, embora a Panini não tenha feito muita questão de mantê-la viva, rs.

Pessoalmente, devo ficar ainda um par de anos à espera de alguma notícia. Só porque o formatão CHM de capa cartão e offsetão cairia como uma luva no DD NC/RM.

Bem melhor que o pisa brite yankee.

Abraços!