segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Tudo sobre minha mãe


O release do filme de Almodóvar trazia uma passagem intrigante:

"Um ditado grego diz que apenas as mulheres que lavaram os olhos com lágrimas podem ver claramente".

Isso descreve bem a personagem Mother em Raised by Wolves, série recém lançada pela HBO Max. Mother é uma andróide (termo também originado do grego) e o tempo todo tem a lógica inflexível de sua programação bombardeada por experiências perturbadoramente humanas. Uma metáfora-tempestade-perfeita sobre a natureza da maternidade. E as metáforas não param por aí.

Na literatura, é comum autores recorrerem a outros planetas ou realidades alternativas para falar de suas visões políticas, sociais, filosóficas, etc. Ridley Scott sempre inseriu o artifício em suas incursões sci-fi e sempre se utilizando dos andróides como pivôs. São os seus peregrinos enviados a terras estranhas.

Apesar de criados à nossa imagem e semelhança, não são reféns dos mesmos princípios éticos e/ou religiosos – sendo a clássica regrinha de três nada mais que linhas de comando obsoletas prontas para serem reescritas. Foi assim com Ash (Alien), que classificou tais princípios como "ilusões de moralidade", com o replicante Roy Batty (Blade Runner) e seu resignado monólogo "Tears in the Rain" e com o David e sua necessidade de transcender a condição de filho/criatura (Prometheus) para se tornar também pai/criador (Alien: Covenant).¹

1 – Mitologicamente falando, praticamente um remake. Malditos gregos.

Foi uma jornada e tanto. E continua sendo.

Já nos primeiros três episódios, Raised by Wolves traz Ridley Scott em sua experiência mais intensa de humanidade sob os olhos de um andr... uma "pessoa artificial". E também a 1ª gynoid da vida do cineasta. Foi mal, Pris.


Ele é um dos produtores executivos e dirige os dois primeiros episódios. Seu filho, Luke Scott, dirige o terceiro. Mas apesar dos temas e da ambientação bem familiares, a série é criação de Aaron Guzikowski, que roteiriza os 4 primeiros episódios.

Em se tratando de HBO, é até redundância mencionar o alto nível da produção, mas vamos lá assim mesmo: efeitos especiais grandiosos, cinematografia que sobrecarrega a retina e muita inspiração na estética eternizada na franquia Alien, incluindo aí as artes do mestre H. R. Giger, ainda que ligeiramente diluídas pra não dar muito na cara.

Descontando o fato de que Ridley Scott segue em sua fixação de destruir naves espaciais gigantescas, não dá pra evitar certas conexões. Várias, aliás.

A premissa é um exercício de futurismo sombrio e, ao meu ver, uma extrapolação flagrante do que vivemos na atualidade. No ano 2145, a Terra foi devastada por uma guerra entre religiosos e ateus. Os poucos sobreviventes ganham o espaço em busca de um novo lugar para recomeçar.

Em segredo, os andróides Mother (Amanda Collin) e Father (Abubakar Salim) são enviados com um grupo de crianças a um planeta promissor e aparentemente desabitado. A missão é estabelecer uma colônia humana regida pelo ateísmo e com valores estritamente científicos. Os anos passam com uma cota acachapante de percalços que é pontuada pelo maior deles: uma nave com um contingente de religiosos chega ao planeta.

Comentar mais é desnecessário, mas já dá pra perceber o caminho arriscado – e riquíssimo – que Raised by Wolves escolhe trilhar.


Mesmo sem travar uma hard talk entre religião e ciência, o roteiro consegue deixar claro o que está em jogo ali. Tão interessante quanto observar a predisposição (genética?) de uma criança à crença em um poder superior invisível é acompanhar a incansável retórica de Mother. Sentenças como "a crença no irreal pode confortar a mente humana, mas também enfraquecê-la" ou "nunca avançaremos, a menos que resistamos ao impulso de buscar consolo na fantasia" parecem extraídas de anotações do Richard Dawkins.

Se o modelo Hyperdyne 120-A-2 era disfuncional, o caso de Mother é a completa experiência materna on crack. Um elo perdido entre a precursora Maria (com referência no design em seu modo Necromancer/Mamãe É de Morte), a Banshee do folclore celta (embora tenha me lembrado mesmo a Banshee Prateada!) e, obviamente, a zelosa Sra. Norma Bates. Ainda assim, Mother é capaz de emocionar em momentos de notável sensibilidade ao lidar com questões como luto, culpa e redenção. Como toda mãe tridimensional que se preze.

Amanda Collin brilha. Sua atuação é visceral e performática, evidente em cada pêlo eriçado e veia saltada de seu rosto. Sistema Stanislavski adaptado de algum tablado hardcore dinamarquês, com certeza. Este post é dela, por obséquio, mas um grande jogador precisa de um grande time. E isso ela teve.

Abubakar Salim executa com perícia um trabalho dificílimo como o passivo e circunspecto Father, que, ao mesmo tempo em que administra os excessos de Mother, evita sucumbir à força da natureza que ela representa. Impossível não lembrar daquele antológico James Woods de As Virgens Suicidas.

O garotinho Winta McGrath como o relutante Campion também é uma grata surpresa. Travis Fimmel e Niamh Algar como o casal de ex-guerrilheiros e impostores Marcus e Sue estão corretos. A cena das cirurgias feitas por um andróide semicarbonizado (2º episódio) é ótima.

Assistir Mother defendendo no grito (literalmente) a santidade de seu dever – e frequentemente assumindo o inglório manto de anti-heroína – é uma análise do quão traiçoeira é a linha que separa o amor e o ódio. Ou o céu e o inferno.

Definitivamente, ser mãe é padecer no paraíso.

6 comentários:

Luwig Sá disse...

A cena mais aterrorizante que eu vi¹ em 2020 foi a da contação da historinha dos Três Porquinhos. Como diria o filósofo da casa, senti "baforadas criogênicas na espinha".

¹ na ficção, claro; na vida real isso é café pequeno para o que já vimos nesse maldito ano.

Grande abraço.

doggma disse...

Tensão vazando pela tela, Luwig. O mesmo ep fecha com um puta momento sensível quando ela fica sabendo que não foi a responsável pela morte das crianças. De extremos para extremos.

Estamos falando de uma apresentação perfeita aqui.

AMANDA COLLIN É FODA.

Abração, velho!

Marcelo Andrade disse...

Salve Dogma....essa serie esta foda d+.
Dpois de alguns meses irei reve-la so p/ ver se pego algo alem da superficie...referencias d+....

doggma disse...

E só melhora, Marcelo! Os eps 6 e 7 são uma aula de crescendo de tensão. E a lenta transformação do Marcus pela religião está sensacional.

Ah, com certeza tem algo além ali que me merece uma revisão futura. Fora todo o questionamento existencial, a ambientação da história já é completamente bíblica na estética. Várias cenas podiam facilmente ser confundidas com as de alguma adaptação religiosa.

Abraços!

Paulo Bala disse...

Velho, a mother no modo de ataque (primeiro episódio) é uma das coisas mais legais que já vi. Ridley Scott vem se envolvendo com coisas interessantes, por exemplo, The Terror vale a visita, sem dúvida alguma.

doggma disse...

Aquela cena inicial foi impactante mesmo, Paulo. Aliás, o conceito estético/simbólico das Necromantes é espetacular.

Cara, a primeira temporada de The Terror é fantástica, uma belíssima surpresa. Mas também, um elenco predominantemente britânico e encabeçado por Jared Harris é até covardia.

Preciso conferir a segunda temporada, com o George Takei e o C. Thomas Howell.