Halloween Kills cumpre à risca a promessa do título. Não é apenas o longa mais matador da franquia, como também é o recordista de mortes em um único filme slasher. Por isso não deixa de ser curioso o perfil da trinca de roteiristas: o comediante Danny McBride, o cineasta indie Scott Teems (que até daria um bom serial killer) e o também diretor David Gordon Green, um craque no drama. Trio fora da curva trocando novas ideias com velhos fantasmas.
A chefia realmente botou o peão Michael Myers pra suar a máscara full time, fora as horas extras. O que, no caso, se traduziria como o Halloween 2018, que trouxe a primeira etapa da mesma noite sangrenta, tal qual o clássico de John Carpenter em relação a Halloween II (Rick Rosenthal, 1981). Fosse um bloco único, o body count explodiria e disputaria o campeonato direto pela divisão dos filmes de ação-brucutu.
De fato, fica claro que a melhor maneira de apreciar a obra é numa sessão com os dois filmes em sequência, coisa que me vejo fazendo num futuro bem próximo. Porque vale a pena. Muito.
Apesar dos longas não terem sido filmados simultaneamente —o que chegou a ser cogitado em 2018— e da produção ter amargado 1 ano de gap pandêmico, a continuidade-pacing-ritmo flui à perfeição. Novas sagas pessoais são agregadas às anteriores e vários personagens secundários do run original são resgatados/desenvolvidos para interagir na festa. O que é louvável. A maioria dos diretores se limitaria apenas a espalhar ovos de Páscoa em pleno Dia das Bruxas.
Isso também se estende ao núcleo principal, com a boa química entre Andi Matichak, Judy Greer e Jamie Lee Curtis, a eterna Laurie Strode. Além, claro, de Will Patton, aqui poupado da síndrome de Sean Bean que acometeu sua filmografia nos últimos tempos.
A história faz pontes com os eventos do 1º filme e fornece mais pistas sobre seu lugar no universo da franquia.
Logo de início, enquanto o redivivo oficial Hawkins (Patton) é socorrido, ele relembra a fatídica noite de 40 anos atrás, quando participou da caçada a Michael Myers, logo após este sobreviver aos tiros do Dr. Loomis. Ou seja, agora temos a confirmação de que Halloween II é desconsiderado nesta encarnação (embora que: 1 - a personagem Annie Brackett, BFF da Laurie de raiz, apareça numa imagem de arquivo extraída daquele filme; e 2 - Michael Myers revele um olho vazado num framezinho maroto). O flashback é concluído de forma dramática e lega ao personagem, além de profundidade, um trauma para a vida.
Aliás, Haddonfield poderia muito bem ser a capital mundial do stress pós-traumático. A quantidade de habitantes sequelados por metro quadrado é absurda, batendo fácil os insones da Rua Elm e os transudos do acampamento Crystal Lake.
Em Halloween Kills, o pacato subúrbio vira o epicentro slasher do cinema atual. A jornada sanguinária atinge ali novos patamares, criando um microcrosmo orgânico, reativo, com uma atmosfera de terror e histeria digna de uma placa de boas vindas escrita por Dante Alighieri. Algo que só vimos, quando muito, no 4º exemplar da franquia, o subestimado Halloween 4: O Retorno de Michael Myers (Dwight H. Little, 1988), com seus caipiras da milícia caça-Myers. A escalada de tensão é muito bem conduzida na sequência do hospital. Além de ser um tapa na cara da mentalidade de rebanho, tão frequente nos dias atuais.
Fora o bom resgate do personagem Tommy Doyle, agora um coroa sedento de vingança interpretado por Anthony Michael Hall (sim, estamos velhos), me impressionou o retorno da atriz Nancy Stephens como Marion Chambers, a ex-assistente do Dr. Loomis. É seu quarto Halloween —e o 2º em uma linha temporal paralela— e começa no filme como a mais longeva sobrevivente de um ataque direto do tubarão Myers.
Destaque também para o arrepiante cameo do próprio Dr. Loomis, eternizado pelo saudoso Donald Pleasence e aqui representado por Tom Jones Jr., diretor de arte do filme. Mórbida semelhança.
O filme também faz atualizações importantes e controversas para os fãs die hard da série: saem a habilidade quase psíquica de Michael rastrear Laurie e a sua obsessão em eliminá-la. Considerando que o filme anterior estabeleceu que o parentesco entre eles não passava de um hoax, realmente não fazia sentido manter os artifícios —o próprio Carpenter classificou tal parentesco como "estúpido" e que só saiu do papel para preencher o fiapo de roteiro do 2º filme.
Longe de mim discordar do Carpinteiro, mas sempre achei essa a peculiaridade mais intrigante da série, quiçá de todo o subgênero. Só comentando.
Ao mesmo tempo, isso evidencia alguns aspectos negativos da trama, especialmente o abrupto déficit intelectual das protagonistas. Primeiro, pela já desmistificada fixação familiar de Michael, onde a solução para o Clã Strode-Nelson seria simplesmente pegar a estrada direto pra, sei lá, Porto Seguro. Depois, a insistência suicida de Allyson (Matichak) em se unir à caçada a uma criatura que, diante de seus olhos, acabou de massacrar policiais, meia Haddonfield e ainda se mostrou à prova de tiro, porrada, facada e fogo no parquinho.
Nada que não pudesse ser creditado, com alguma boa vontade, ao calor do momento e à comoção generalizada daquela comunidade em choque. Com exceção da cena final, na garoteada incrível da mãe de Allyson, Karen (Greer), na antiga casa de Michael. É o equivalente ao clichê da loira subindo as escadas ao invés de fugir pela porta. Só que pior.
Uma pena, porque a construção foi sensacional. A sequência toda que começa com Michael cercado por um grupo de moradores de Haddonfield inclusive me remeteu ao antológico quebra de Max Cady no beco, em Cabo do Medo. E foi ali que a coisa acabou recuperando parte de sua mística perturbadora.
O filme reforça a figura mascarada de Michael Myers como um elemental do medo, uma força da natureza. Sua lenda o precede. Mas, principalmente, é o que a máscara projeta. Isso explica em parte a impotência física da maioria de suas vítimas —uma delas só escapa porque remove o adereço parcialmente ao se debater. Em outra perspectiva, é a única lógica que Michael parece obedecer, além de matar pessoas das maneiras mais brutais (ou apenas eficientes, dependendo da situação). Em ao menos duas cenas bem reveladoras, fica clara a devoção de Michael à máscara, como se fosse uma ferramenta de trabalho tão essencial quanto uma faca. Ou provavelmente mais.
"The Shape" conclui sua jornada daqui a um ano, em Halloween Ends. Mas o mal, sabe como é, nunca termina...
2 comentários:
Assisti, mas deixou um gostinho estranho....
Os time envolvido frisou bastante a quebra em relação a mítica imortal do Michael, levantada nos filmes (descartados) anteriores, mas aqui, parecem que vão pelo mesmo caminho. A história foi um fiapo, tá na cara que pegaram os dois filmes, encheram a linguiça de jornal, e dividiram em dois, para tentar lucrar uns trocos a mais.
Se valeu a pena ou não, só fim, no próximo ano, vai dizer, mas pelo que foi mostrado, só um Ex-Machina pra resolver isso de forma convincente.
Fala, Alexandre!
As reações estão bem ame-ou-odeie mesmo. Fui sabendo que a trama básica já havia sido montada no Halloween 2018 e que esse se concentraria no payoff, com o trem gore descarrilando, sem muito papo. Tanto que nem precisei fazer sinopsinha, como de costume. E claro que espero do Ends algo mais elaborado pra fechar.
Sobre a desmistificação da imortalidade, há controvérsias. Ao meu ver, nunca rolou isso não. No 1º filme, Michael tinha levado tirambaços do Hawkins e da Karen (este, no pescoço!), fora o atropelamento e as facadas. E aqui fica bem evidente que ele é o mal puro e só. Como o Carpenter e a Debra Hill haviam visualizado.
Outra coisa que estão criticando e que adorei: os fanservices e as referências aos filmes anteriores. Impressionante o trabalho e o esforço de trazerem vários atores originais. Curti demais, até por ter revisto toda a série recentemente.
Enfim, curti pelas mesmas razões que a crítica tem desancado, só que numa perspectiva positiva. Mas reassistirei e pode ser que reveja algumas impressões. Ou não.
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