hehehe
Certa vez, quando eu era moleque, ganhei uma moralzinha extra com a galera da minha rua: promovi uma sessão sold-out de Re-Animator, horror clássico de 1985. O sucesso foi tão grande que, a pedidos, marquei uma segunda data, com direito à superfaturamento sobre o preço da locação (Cr$). Pilantragens à parte, vejo que o filme - um sarau lovecraftiano com cientistas malucos, mulépeladas e zumbis a jato - é mais lembrado hoje pela menção honrosa em Beleza Americana (o inesquecível momento romântico aí em cima) do que propriamente assistido. A Noiva do Re-Animator, continuação de 1990, então, nem se fala. Irregular e 987 vezes mais sanguinolento, era reprise certa no finado Cine Trash e acho que isto resume sua exposição de um modo geral. Não viu estas pérolas? Larga esse computador e alugue os dois urgente. Ah, já viu? Então reassista.
A epidemia living-dead que se espalhou no cinema e nos quadrinhos despertou algumas franquias que jaziam em suas criptas cinematográficas. A Volta dos Mortos-Vivos foi uma delas e Re-Animator: Fase Terminal (Beyond Re-Animator, Espanha/2003) é outra que aproveitou a brecha. Sempre que eu ia à locadora, via o DVD ali, meio que jogado, entre o Lenda Urbana 2 e o Mão Assassina, sem nenhum resquício da linhagem noble-dead de outrora. Olhava pro Jeffrey Combs na capinha, ainda com aquele olhar alucinado, e lembrava da época em que o primeiro filme era novidade e causava o maior frisson. E daquela bagunça maneira que eu fiz.
E, cara, é o Jeffrey fuckin' Combs! ...o sujeito mais freak, obsessivo/paranóico, transtornado=sociopata desde que Malcolm McDowell entregou a alma ao Kubrick e nunca mais a teve de volta, acrescido daquela malevolência nerd sem igual, mesmo porque só ele a tem!
Um zumbi saudável vale por dois!
Mas não sou fácil assim. Já estou bem calejado nesta estrada de produções B que dificilmente vingam suas premissas instigantes. Cansei de ver outrora grandes atores, atrizes, roteiristas e diretores que, após um grande início, sucumbem artisticamente a sabe-se lá o quê (mas que deve ter a ver com grana). É até um espanto quando isto não acontece. Nem todos partem de um suspense mãos-à-obra como Encurralado pra desembocar numa carreira repleta de mega-produções importantes e rentáveis. Poucos realizadores de cinema "marginal" conseguem a almejada credencialzinha para reverter seus projetos autorais em grandes eventos de Ruliúdi. Para os que ficam à margem do sistemão, só resta a attitude, some fuckin' attitude - "Pfsodam-se as críticas. Tenho meu público e minhas produções se pagam. Eles precisam de mim. Sou um mal necessário." - aí entra aquela risada luciférica [hueuheuahuahuahue].
Penso nisto como sendo uma diretiva básica na carreira de algumas pessoas do ramo. O roteirista/produtor/diretor Brian Yuzna é um extremo disto aí, e na verdade só pensei a respeito porque vi o "Espanha" lá nos créditos da produção. Quando a coisa muda de endereço como se fosse acampamento cigano é porque tem café neste bule. Yuzna, malandraço, deve ter visto mão-de-obra muito mais contabilizável e com a especialização e o profissionalismo que se espera de um pólo cinematográfico em franco desenvolvimento (essa sentença parece slogan institucional da Embrafilme, mas vai assim mesmo).
Tá e daí? Daí que o Yuzna-Man Director Tabajara não vem equipado com o filtro que deixa suas idéias pervertidas e insanas transcorrerem fluidamente, e as coisas acabam soando algo desconexas, irregulares, cheias de camadas e volumes, UUUuuuUUUOOoooOOOooonnNNNnn. Você vê lá várias arrobas de soluções originais e "ynuzitadas", mas bastante desproporcionais ao contexto geral.
Ocasionalmente, todo aquele festim gore nonstop dá certo (como em Sociedade dos Amigos do Diabo, seu primeirão, louquinho de pedra), mas o ideal mesmo é a presença de um maestro tarimbado pra reger a horrorquestra, alguém que consiga filtrar devidamente todas aquelas pirações. E esse camarada, este Yuzna-Filtrator Tabajara, chama-se Stuart Gordon.
Se Yuzna fosse Jack, O Estripador, Gordon seria seu bisturi. Mick Jagger e Keith Richards. Lennon/McCartney. Suas colaborações em Dolls, Do Além e no Re-Animator number one não me deixam mentir. Crossovers cinemáticos de uma hora e meia onde a palavra de ordem é diversão amoral, esquisita e até meio irresponsável, já que, por vezes, resvalam quase naqueles ensaios experimentais pós-vanguardistas à Gerald Thomas (urgh), só que acrescido de sangue e vísceras. Sai o "você é uma macieira gerando seu primeiro fruto em plena estação das uvas passas", entra o "você é uma massa protoplásmica com tentáculos e glândula pituitária hiper-evoluída, e está tentando violentar aquela loira boazuda".
No entanto - não quero dar a impressão errada - não são nenhum Lawrence da Arábia de perfeccionismo em concepção (rá!), ou tratado definitivo de porra nenhuma. Só são divertidos pra caramba, ora pois.
A trama de Fase Terminal começa na época do segundo filme, justamente quando a coisa sai do controle. Lembra, aquela mortalhada trançando pela vizinhança, chapadona com o reagente do Dr. Herbert West (The Combs)? Um deles invade a casa do moleque Howard Phillips (homenagem ao H.P. Lovecraft) e mata a irmã do garoto. Antes do desmorto terminar o serviço, a polícia chega e dá cabo do monstro. Momentos depois, quando o Dr. West é preso, Howard encontra uma seringa que caiu do bolso dele contendo um pouco do reagente. O tempo passa, o guri se forma em Medicina (trauma psicológico, sabe como é), e vai fazer as vezes de Dráuzio Varela na penitenciária onde o estranho doutor está cumprindo sentença. Mas ele não quer vingança, pois os anos de estudos sobre as fenomenais propriedades do reagente o tornaram obcecado pela busca da "cura para a morte". E só quem pode ajudá-lo é o insano Dr. West. A cobaia? O presídio! huehuahuehuahua
Uma característica que sempre gostei em Re-Animator e nas seqüências (inclusive esta), é que as criaturas passam ao largo da influência de Romero. Tá certo que eles são assassinos em potencial e querem destruir o mundo, mas são antes de tudo, narcisistas e dominadores. Zumbis machos-alfa. O ressuscitado via reagente perde todo e qualquer resquício de compaixão e moralismo, e é embriagado com as piores nuances de seu caráter em vida. São esquizofrênicos, muito violentos, falam bastante (pelo menos, os que ainda têm mandíbula) e preservam alguns traços de sua sistemática cotidiana. Não têm hábitos canibais, mas não se furtam em distribuir dentadas quando lhes convém. Sua resistência é variável e não obedece a nenhum padrão. As criaturas são duronas, muito mais fortes que humanos normais, e resistem a praticamente qualquer coisa (até tiro na cabeça). Cada parte de seu organismo é autônoma. Só são neutralizados mesmo após um arregaço muito bem dado. Pra completar, são mortos-vivos velocistas - muito antes de Extermínio e Madrugada dos Mortos.
Fora Combs e o irlandês Jason Barry (o Howard Phillips adulto), o cast inteiro é de ator espanhol falando inglês igual chicano. Parecia que a qualquer momento o Danny Trejo ia mostrar a fuça por lá. Como de praxe, Yuzna nos presenteia com mais uma bela adição a sua lista de undead girls: a deliciosa espanhola - trocadilho involuntário - Elsa Pataky (de Serpentes a Bordo). Pena que ela não ganhou um tratamento parecido com o que a personagem de Barbara Crampton teve no filme original.
Não posso deixar de destacar o excelente nível dos atores espanhóis. É foda chegar à esta conclusão logo em um trash movie, mas é justamente por isto. Foge da panela almodóvariana. Estão lá Santiago Segura (de Blade 2, o preso junkie que chapa com o reagente), Enrique Arce, Simón Andreu e a revelação Nico Baixas (sujeitinho impressionante... é o novo Michael Berryman!).
"É sal de fruta ou sal de fru-tas...?"
Jeffrey Combs, entre um filme e outro, deve se trancar em alguma câmara criogênica. Só pode. Ele continua lá, com aqueles óculos fundo-de-garrafa e aquela gravatinha de colegial à Angus Young. Fisicamente, o cara envelheceu quase nada em comparação com o filme de 1985 - se bem que lá ele não era bem o estereótipo de "jovem estudante universitário". E ainda mantém a mesma expressão de quem está muito incomodado com o mundo à sua volta e que a raça humana poderia se extinguir só pra ele poder trabalhar em paz. É o gênio irracional por excelência. Qualquer sacrifício é justificável e qualquer um é dispensável em nome da Ciência. Menos ele. Já estava com saudades.
Re-Animator: Fase Terminal, embora não tenha a mesma dinâmica frenética dos filmes anteriores, consegue reproduzir o humor bizarro e o climão lovecraftiêro da série. Para os veteranos fangore, tem a velha abertura estilo aula de anatomia e o tema de Psicose na versão aloprada (faltou só a presença ilustre do Dr. Hill*, a cabeça decepada tarada e antagonista máximo do Dr. West!). De ruim, tem vários furambaços, escorregões absurdos e invencionices over que, puta que pariu, até eu assistindo sozinho fiquei constrangido. É aquele lance do Yuzna sem filtro.
Mas isto é o que menos importa. Recentemente foi anunciado o quarto filme da série, House of Re-Animator, desta vez com a line-up clássica! Stuart Gordon na direção, Yuzna produzindo, mais Jeffrey Combs, Bruce Abbott e a eterna "Bnup" Barbara Crampton. William H. Macy fará o presidente dos EUA e Crampton será a Primeira Dama. Quem diria que a mocinha que ilustra o início deste texto chegaria tão longe?
*
Dr. Carl Hill: [a cabeça do Dr. Hill "despertando"] Wesssssssssst...
Herbert West: Yes, Doctor, it's Herbert West. What are you thinking? How do you feel?
Dr. Carl Hill: [sussurando] Youuuuuuuuuu...
Herbert West: [tomando nota] "You..."
Dr. Carl Hill: Bassssstaaaaaarrrrrd!
_______________________________Re-Animator, 1985
Na trilha: Killing Joke - The Death And Resurrection Show.
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