quarta-feira, 20 de agosto de 2008

R.I.P.?


É sempre difícil comentar sobre um personagem com tanta estrada sem patinar em imediatismos e generalizações, tão comuns nesses tempos do editar/publicar. Mas acho que dá pra mandar essa na boa: em seus quase setenta anos, poucas vezes o Batman rendeu interpretações tão criativamente peculiares. Em grande parte, em razão de O Cavaleiro das Trevas e sua proposta revisionista, auto-suficiente e hermética, mas preservando bases cravadas na essência original. Bem, foi o que foi (e vou parando por aqui senão sai outro review) e quem se aventurar pelos quadrinhos do morcego hoje vai se deparar com um cenário muito diferente e, de certo modo, tão arraigado em seus objetivos quanto o filme - para o bem ou para o mal.

Mas quer saber? Batman R.I.P., a nova e polêmica saga, periga ser a melhor coisa publicada do herói em anos.

Antes do lançamento, Grant Morrison, recordista olímpico dos 100 metros de autopromoção, se esmerou no hype. Afirmou em entrevista ao CBR que faria com o Batman "algo pior que a morte" e que seria o fim da era Bruce Wayne como o cruzado encapuzado. E ainda falou mais um monte por aí, desmentindo algumas e se abstendo de outras. Seja como for, o arco, que está agora em sua 4ª parte (Batman #679), pode até não ser uma megaprodução, mas demonstra claramente porque Grant Morrison é Grant Morrison e não um Jeph Loeb qualquer.

Leitura instigante, com climão de labirinto conspiratório e uma boa dose de suspense. É quase uma nova forma de desconstruir/demolir o personagem por dentro a partir de elementos tradicionalmente "intocáveis". Afinal, não é todo dia que vandalizam o bom nome da família Wayne.

Spoilers à frente!


Martha e Thomas Wayne, os pais de Bruce, retratados como junkies, alcoólatras e freqüentadores de orgias. O pequeno Bruce seria fruto do adultério de Martha com Alfred Pennyworth (sempre o mordomo!). A suspeita de que Thomas teria forjado sua morte e agora seria quem puxa as cordinhas do submundo de Gotham. Esse pacote inflamável enfureceu muitos críticos e fanboys, mas até o presente momento teve seu lugar e motivações dentro do contexto. Certamente, grande parte é apenas armação de vilão recalcado - o problema é que este vilão em particular parece ter acesso total aos segredos de Bruce. Mesmo a sua suposta identidade soa tão bombástica quanto improvável, visto que ele alega ser o próprio Thomas.

Mas nada pode ser descartado ainda, já que Morrison, perversamente, brinca com as possibilidades. Ao mesmo tempo em que sugere que tudo pode ser obra da mente depauperada de Bruce (elemento citado pelo roteirista quando comentou o fato de que o herói vive toda essa loucura desde os anos 30), ele também faz questão de mostrar que se trata de um pesadelo bem real.

A trama é focada no retorno do misterioso Black Glove, o "keyzer soze" que tentou assassinar o morcego no arco League of Heroes, também de Morrison. Sem sair das sombras, ele reúne o perigoso Clube de Vilões, que aparenta ser liderado pelo Dr. Simon Hurt. Não fica claro se Hurt é o Black Glove - o verdadeiro antagonista do Batman aqui, considerando que o Clube oferece ameaça real apenas aos bat-sidekicks. Mas pelo andar da carruagem, eu já tenho o meu suspeito principal.

Após o jump >>


É Jezebel Jet, a bela namoradinha do herói. Vários indícios saltam aos olhos (a primeira a receber um contato do Black Glove; esteve presente no momento do colapso mental de Bruce; convenientemente saiu de cena ao ser capturada; perfeita demais pro sempre trágico Darcnaite). Contudo, são pistas óbvias demais, o que contraria a única qualidade totalmente indiscutível de Morrison: ele pode ser tudo, menos datado. Quem em sã consciência poderia imaginar, p.ex., que Xorn era o Magneto (estou avaliando imprevisibilidade aqui, não bom senso)? Essa busca pelo ineditismo e soluções inesperadas é justamente o que dá o tom principal de Batman R.I.P. E nesse quesito, como diria Marcelo Nova, o passado é o futuro, baby.

O Clube representa não só mais um trampo arqueológico absurdo de Morrison (é composto pelos arquiinimigos do velhuscão Batmen of All Nations!), como também uma de suas maiores obsessões: a Era de Ouro.

O próprio visual do bando parece ter sido inspirado na False Face Society, organização criminosa que o morcego enfrentou em Batman #152 (dez/1962). Curiosamente, seu líder mascarado se revelava ninguém menos que o Coringa. Um modelo a ser seguido? Meu palpite é que não, considerando que o palhaço (que, por sinal, está parecendo um primo do Marilyn Manson) já tem uma função bem definida no arco.

Toda essa gana para encaixar o passado camp/infantil/psicodélico/doidaço do velho Batman na dinâmica atual foi provavelmente o maior guilty pleasure de Morrison ao escrever a saga. E prepara o terreno para a punchline não só da edição #678, mas também do arco e, se bobear, da década inteira.


O Batman de Zur-En-ArrhNão dá pra ser mais rebuscado que isso.

Sem dúvida, é o carro-chefe da fixação cinqüentista de Morrison em R.I.P. Enxerto inacreditável de Batman #113 (fev/1958), história Batman -- The Superman of Planet X! (haja maconha, Senhor), onde o morcegão é teleportado para o planeta Zur-En-Arrh e ganha poderes ao melhor estilo Superman. Lá ele conhece um Batman wannabe alienígena que se inspirou nele para defender a justiça em seu mundo. A idéia de revisitar esse passado negro (ou seria colorido?) em tempos de Coringa do Heath Ledger e após oitocentas Crises só poderia ser feito do jeito que foi: tudo não passava de uma indução ilusória na cabeça de Bruce.

A palavra-gatilho "Zur-En-Arrh" foi criada pelo Dr. Hurt para "desligar" a persona-Batman de sua psiqué. Ao mesmo tempo, Bruce, antecipando um eventual atentado psicológico (claro!), criou uma identidade-backup, que é o Batman de Zur-En-Arrh. Infos cedidas pelo infame Batmirim, também resgatado do limbo pré-Crise - aparentemente, o Mxyzptlk do morcego aqui é apenas um agente de racionalização criado pelo herói. Em outras palavras, um grilo falante.

É certo que antes dessa invocação retrô ante-diluviana, poucos compreenderam de cara o significado de certas cenas (os que entenderam ou são freaks ou já estão quase comendo capim pela raiz... dá um tempo!). Ainda mais flutuando soltas dentro da costumeira narrativa fragmentada de Morrison, este David Lynch dos quadrinhos. Ou seja, Morrison é quadrinho que demanda mais que meras folheadas, o que é uma virtude e também um problema. Por mais que seja enriquecedor para o texto e ocasionalmente divertido para o leitor, não é sempre que bate a disposição de sair por aí à cata de referências (é ou não é Alcofa?!). E o Morrison faz todo o acabamento do roteiro em torno disso.

A propósito, não estou acompanhando nenhum tie-in. Com Secret Invasion e agregados já sobrecarregando o sistema (neurológico), é humanamente impossível pra mim. Fora que ainda estou com o bat-radar em frangalhos desde a minha incursão em World War Hulk. Santos caça-níqueis, Batman!


A arte de Tony Daniel é competente, mas não surpreendente. Gostei do novo Batmóvel à Aston Martin (não é nenhum Tumbler, mas...). E as capas variantes de Alex Ross são um show à parte. Fazia tempo que o "Capitão Marvels" não se apresentava tão bem em séries regulares.

Fica a expectativa para próxima edição - que está me parecendo muito, muito divertida - e a resolução da trama que está sendo vendida como "definitiva" na trajetória do morcego. Com dois arcos subseqüentes já engatilhados (um de Denny O'Neil e outro de Neil Gaiman!), tudo indica que o velho cruzado vai mesmo passar o capuz adiante - e, quem sabe, finalmente assumir a posição da sua contraparte na série Batman do Futuro. Ao meu ver, não seria nada mal. Mas duvido que dure.

Ps: Grant Morrison deve ter pirado com o trailer de Batman: The Brave and the Bold!

6 comentários:

Anônimo disse...

Poxa Doggma texto duka. sabia que o morrison tinha usado um monte de referência, só não sabia de onde e me fez rever com outros olhos a saga, na verdade tó pensando em reler tudo, desde a entrada do escocês voador na revista do morcego.

Anônimo disse...

Sei não, Dogg... Se isso tudo viesse à tona como um arco de histórias qualquer, eu até que estaria apreciando com outros olhos que não os de aflição perante mais um iminente período pseudo-revolucionário no personagem.

E Deus sabe o quanto amo referências para estender/enriquecer o entendimento final do enredo, mas Morrison está se superando em RIP e Crise Final de tal modo que há seqüências que você realmente precisa ser um Randall Dowling pra interpretar o encadeamento das coisas do jeito certo. Ponto pra você, amigo.

Talvez o problema seja comigo que de tanto feijão-com-arroz acabei me tornando um leitor old scholl no que atine ao morcego. Vai ver foi o choque anafilático da descoberta da "identidade-backup" do Bruce.

Certo é que preciso rever meus padrões psíquicos e realinhá-los para o scottish way of life.

Por último, só fico imaginando o quanto estrago J. H. Williams III faria com um roteiro intrincado desses.

Alcofa disse...

Eu até tentei ler essa fase do batman com Morrison... mas to com o mesmo problema: coisas DEMAIS para ler ... seja em formato scan, celulose, cartazes, enfim ...

E sobre o jeito de Morrison ecsrever , é exatamente o que tu falou: vc pode aproveitar as obras do cara de três maneiras: "superficialmente", lendo tudo d euma vez e como as coisas vão surgindo; com o pc ligado ao seu lado e com a tela do google prontinha pra vc digitar qualquer coisa que venha a achar estranho, ou sob efeito de fortes drogas alucinógenas , que é como eu acredito PIAMENTE que Morrison escreve a grande maioria de suas obras...

Abração!

Anônimo disse...

Essa mania do Morrison de fazer referências obscuras (quase invisíveis) é um porre. Foi assim com "7 Soldados da Vitória", que eu só fui entender realmente quando li uma explicação quilométrica sobre o assunto. Pra entender as referências dele você tem que ser perito em toda a cronologia da editora... Assim não dá.

E essas tramas psicodélicas dele... Porra, já chega dessa merda! Cacete, ele já fez "the filth", "Sea Guy", "Os invisíveis"... Até quando ele vai continuar com essas maluquices do caralho? Custa fazer como ele fazia em Patrulha de Destino e Homem-Animal, onde a maluquice era pelo meno inteligível? Se ele fizesse com esse "Batman RIP" o mesmo trabalho que está fazendo com "All Star Superman" a coisa seria bem melhor.

Aliás, como se explica All Star Superman pelo Morrison? Alguém impediu ele de usar LSD enquanto escrevia a série? Tá normal demais pra ele estar escrevendo.

Anônimo disse...

Acho q a serie tem seu valor, mas o Morisson (seria mal, ou ate um certo ponto bem, de sobrenome?) se esforça ao maximo para deixar como os Surrealistas gostam. Tem coisas ali q nem o proprio Batman decifraria se estivesse lendo a revista. Realmente precisa estar no espirito para ler o Grant Morrison, na minha opinião ate o o All Star Superman tem umas loucuras brabas.

Marcelo Soares disse...

Otimo texto, apciencia de buscar as referencias hein?

Para mim, MOrrisson é um bom roterista, um David Finck mesmo dos quadrinhos, o problema é que ele é compelxo demais, como em RIP e CF, e num mercado com um publico mediano isos derruba as vendas, a editora fica puta e historias inteligentes assim se perdem depois.

Bem, acho que com um icone desses, deveriamos ter historias inteligentes sim, bem amarradas, com boas sacadas, mas nao tao experimentais, posso estar sendo simplótio até.

Mas vale o aplauso ao Morrisson que com essas referencias mostra respeito as decadas de histórias do morcego.