Então fizeram mesmo. Cai mais um dos intocáveis, numa contagem de corpos... ou melhor, de clássicos que não parece ter fim em Hollywood. Não sei se é mera falta de idéias novas ou de uma geração substituta à altura (onde estão os novos Ridley Scott, John Landis, Joe Dante, James Cameron...?), mas a partir do momento em que temos um remake de nome O Dia em que a Terra Parou (The Day the Earth Stood Still, EUA, 2008), é porque o cenário já passou do estágio "preocupante". A idéia, claro, é completamente desnecessária. E não só porque o original de Robert Wise é sci-fi de apelo humanista que soa universal até hoje ou porque foi corajosamente engajado e apartidário no auge da histeria anticomunista, mas porque é atemporal em essência. Havia ali uma moral, um recado. Sendo assim, como um remake se justifica neste caso? Segundo a nova versão, muda-se a moral, muda-se o recado.
Em tese, até que faz sentido. O ser humano vive se diversificando na autodestruição. Nos anos 50, compreensivelmente, a Bomba era a endorser oficial do apocalipse - ou, ao menos, a ameaça mais imediata. Hoje, pensamos mais nela como um parente distante e (muito) desagradável, ao passo que assuntos como poluição industrial, degelo ártico/antártico, desmatamento indiscriminado e catástrofes naturais cada vez mais subseqüentes estão na ordem do dia. Desenvolvimento humano acelerado rumo ao colapso ambiental definitivo. Está tudo lá, em Wall-e. É nessa verdade inconveniente que o remake encontra sua raison d'être. Ok, vamos classificar isso como uma boa ideia*.
* estreando uma das novas regras ortográficas. Sinto como se tivesse acabado de cometer um crime.
Fora esta e mais algumas leves adaptações, o filme reedita a narrativa e o timing original quase magicamente e sem traumas. Impressiona como a premissa segue funcional e instigante após 57 anos (eu disse que era atemporal) - um ovni invade o espaço aéreo norte-americano e aterrissa em pleno Central Park. Os rapazes do Tio Sam prontamente se posicionam para receber o visitante e o resto é história. O alienígena Klaatu desce para se comunicar pacificamente, mas a xenofobia do homo "sapiens" fala mais alto e o pior acontece.
Uma reverência necessária aqui... no original, esta sequência é uma das mais arrepiantes e icônicas que o cinema já produziu: logo que sai da nave, Klaatu/Michael Rennie é atacado sem qualquer motivo senão o da ignorância; o autômato Gort é ativado e investe contra os agressores, mas é impedido por Klaatu, que, mesmo ferido, salva as vidas de seus algozes. Quase um Trotsky alienígena.
Um momento perfeito e emocionante (justamente homenageado por Luc Besson em O Quinto Elemento). Importante reconhecer que, no novo filme, a cena não tem - e sabiamente nem busca - o mesmo impacto, mas ainda assim é recriada elegantemente. E pontuada com uma versão da lapidar "Klaatu barada nikto" em inflexão extraterrestre quase ininteligível. Adorei.
Klaatu sobrevive, mas fica sob custódia do governo norte-americano. Sabatinado pelas autoridades, ele afirma trazer uma derradeira mensagem para os líderes da Terra, mas esbarra em desconfiança, sectarismo e burocracia - problemas, segundo ele, há muito superados em seu mundo. Apesar do pedido simples, Klaatu descobre que a humanidade está dividida demais para ouvir sobre sua própria destruição. Mais tarde, ele consegue escapar do cativeiro e se mistura à população para compreendê-la melhor e, talvez, oferecer-lhe mais uma chance de redenção. Enquanto isso, a deadline vai se aproximando.
O nome de Scott Derrickson na direção me animou bastante (como já comentei anteriormente). Cineasta sensato e climático, que respeita o tempo e a ordem dos acontecimentos - característica mantida aqui, apesar da típica produção blockbuster com dinâmica acelerada. Puxar o freio, no caso, não deve ter sido tarefa fácil para o diretor, visto que seria mais simples ceder às convenções do gênero e seguir a cartilha de Michael Bay para ameaças espaciais. Afinal, aqui também temos um robô gigante assustador e o marketing já é pré-moldado nestes casos. Não duvido que houveram "sugestões" neste sentido. Contudo, o andamento do filme segue em ritmo cadenciado, sério e sombrio como deveria, com a merecida atenção para as boas performances aqui presentes. Se há mais alguma coisa errada neste remake além de sua existência, e há, não é por inépcia do diretor.
Tenho certeza que agora vou horrorizar o requintado senso crítico dos cinéfilos, mas foda-se: Keanu Reeves está perfeito no papel revisado de Klaatu. Diferente da abordagem suave, naturalmente curiosa e até paternal de Michael Rennie, o Klaanu é uma porta de mogno maciço. Melhor ainda, um tronco de sequóia, incisivo e pragmático. Sua presença 100% seca, indiferente e desprovida de substância (especialidade involuntária do rapaz) deixa o personagem ainda mais austero e sem qualquer afinidade pela condição humana. Numa metáfora simples mas atualíssima pincelada pela personagem de Kathy Bates, Klaatu veio para fazer o que eles (as nações do Primeiro Mundo) sempre fizeram: extinguir os povos menos avançados. Em outro momento, Klaatu diz representar um grupo de civilizações e que a Terra jamais "pertenceu" à raça humana, já que são raros os planetas capazes de suportar formas complexas de vida - o que a torna um objeto de interesse literalmente universal. Levando em conta o vandalismo ambiental que cometemos aqui, não só justifica-se o ultimato dos ETs, como mostra que eles foram até bonzinhos em não incinerar todo mundo sem aviso prévio.
Uma vez destrinchada a fabulosa contra-atuação de Kleatu, fica mole destacar os demais. O elenco é de outro mundo, uma conjunção de astros e outros chavões estratosféricos. Em ordem ascendente: a sempre maravilhosa Jennifer Connelly simplesmente rouba pra si a personagem Helen Benson, agora uma conceituada astrobióloga (atualização pertinente e pra lá de necessária); Kathy Bates superinterpreta e confere uma postura protecionista e republicanóide, o contrário de seu correspondente burocrata do filme original; e o venerável John Cleese, no papel do Prof. Barnhardt, me faz querer abraçar o responsável pelo casting, tamanha a iluminação do sujeito. É dele o melhor e mais importante momento do filme, mesmo numa participação desgraçadamente curta.
Coincidentemente, a partir dali todas as boas expectativas vão sendo frustradas uma a uma em velocidade de dobra. O remake tinha lá suas chances de dignidade (correspondidas até ali com um trabalho sóbrio e competente), mas o que se sucedeu foi um frango escandaloso do roteiro adaptado por David Scarpa.
Sequências como a do "dia em que a Terra parou" per se, soam tão irregulares quanto um furo de lógica (ora, um simples pulso eletromagnético em escala global não seria um genocídio de qualquer maneira?), e a mudança de opinião de Klaatu no final soa exageradamente prematura, ao passo que seu conterrâneo levou 70 anos para ser humanizado. O plot sentimental envolvendo o filho adotivo de Helen, Jacob (Jaden Smith, chato pra caralho), ocupa minutos preciosos de tela e se arrasta muito além da conta. O resultado não poderia ser outro, senão a mais pura pieguice que redime tudo e a todos salva do apocalipse. Quer mais? Na hora, mais que lembrei do filme Esfera (o modo promissor como começa e o modo miserável como acaba).
Mas o caso mais triste é o de Gort (acrônimo terrestre para "Genetically Organized Robotic Technology"), pois, afinal, conseguiram realizar a parte mais difícil antes de colocarem tudo a perder. O golem artificial foi discretamente redesenhado, mantendo o visual humanóide e com uma textura parecida com a do Monolito Negro, de 2001: Uma Odisséia no Espaço. As semelhanças bacanas não param na estética: Gort também é indecifrável, ameaçador e parece ter poder suficiente para arremessar a Terra pra fora da Via Láctea. Parece só uma questão de tempo para o badass espacial voltar a chutar bundas como em 1951, porém... Do jeito que ficou, Frankie Muniz, em O Agente Teen, resolveria a situação sem maiores dificuldades. Decepcionante assim.
Durante pouco mais de uma hora, foi o filme que traduziria satisfatoriamente o clássico original para as novas gerações. De volta ao status de remake que jamais deveria ter existido, O Dia em Que a Terra Parou se tornou um exemplo perfeito de potencial inimaginável limitado pela falta de imaginação. Além do quê, a humanidade não anda merecendo redenção ultimamente. Muito menos uma com gosto de Spielberg.
6 comentários:
Parabéns, mais um post preciso. Assim que abrir meu jornal te contrato para seção de cinema, meu velho.
O pior de ler uma resenha muito bem escrita como essa e já frequentar este espaço por um tempinho considerável é que eu meio que me desanimei de gastar meu tempo (ele anda mais precioso que o dinheiro) indo ao cinema para assistir ao filme. E olha que estou numa curiosidade absurda de ver este remake, ainda mais que assisti o original há uns quatro anos atrás, fora quando vi quando criança (não sou tão velho assim! eu vi foi na TV...). Acho que este vou deixar pra ver em DVD.
Pelo que você escreveu, o filme deve dar uma brochada bem parecida como a que rolou com o remake de "A Guerra dos Mundos", do próprio Spielberg: a saga de destruição e horror dos Tripods vinha correndo alucinante em paralelo à historinha da união da família do Tom Cruise numa boa. Até que...
Agora eu quero ver mesmo é o Terminator 4!!!! E a respectiva resenha aqui (botei pilha, rsrsrs...)
abração e parabéns pela resenha!
[sobre o comentário no meu post: a Lucia Cifarelli é gata, gostosa, canta pra caralho e ainda tem o maior vizú:"namoradinha ideal" - matou!!!! hehehehe... é isso aí!]
Acho que gostei mais porque não vi o primeiro. Achei tudo bem conduzidinho e concordo que o filho do Smith deveria ter sido dizimado nas primeiras falas. Concordo também sobre o robô, que merecia muito mais espaço e, acredito eu, foi um dos fatos que não ajudou muito a bilheteria. Mas gostei bastante do filme. Excelente texto, man.
PS: pensei que vc iria comentar algo sobre o Galactus Ultimate... :)
Nada a ver com o post mas... Cade "Os Melhores de 2008" e o trofeu zumbi de ouro vai pra quem ?
Quanto ao filme goste da primeira hora..
Abraços
Alessandro
Vai ser complicado... passei 2008 inteiro na década de 70.
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