domingo, 31 de janeiro de 2016

O Arquivo X está lá fora


Estamos vivendo uma era inédita para a difusão de séries. Com o veículo transcendendo as plataformas tradicionais, novas e velhas apostas na grade de títulos pipocam num ritmo vertiginoso, se acotovelando entre premières, entressafras e seasons finales. Diante deste cenário, nada mais natural que os divisores de águas retornem do além televisivo para reclamar a sua parte nos espólios deste futuro que ajudaram a construir.

Arquivo X foi, provavelmente, o divisor de águas definitivo. Antes da série, a expressão "mais um enlatado americano" era típica para definir as produções genéricas importadas de lá. E era só o que havia mesmo. Seu legado é tão profundo quanto duradouro - Lost, Sobrenatural, Fringe e inúmeras outras devem as calças a Arquivo X.

Criada por Chris Carter, a série estreou em setembro de 1993, começando como um azarão e alçado ao status de fenômeno pop. Azarão, porque a proposta abordando o paranormal, o sobrenatural e, principalmente, homenzinhos verdes, estava fora de moda naquele início pragmático de década. Talvez a audiência norte-americana estivesse sacudida demais pela realidade, diante da guerra no Iraque, do atentado ao World Trade Center, do Unabomber, do massacre em Waco/Texas e da expectativa pela primeira administração democrata em mais de 10 anos.

Se me perguntassem então o que fez a diferença entre o ícone mainstream que Arquivo X se tornou e o cult obscuro que fatalmente teria sido, diria que foi um ingrediente utilizado sem moderação por Carter: política e conspirações. Entre corredores de escritórios federais, reuniões a portas fechadas e sussurros ao pé do ouvido, o espectador norte-americano teve exatamente a resposta na telinha para tudo aquilo que ele suspeitava vendo as manchetes do dia-a-dia: o governo estava pouco se fodendo para o povo.

Nenhuma das regras esmiuçadas na Constituição se aplicavam aos engravatados. O governo e suas agências faziam o que queriam, quando queriam, com quem queriam e não davam nenhuma satisfação. Eles eram os cowboys e as pessoas, o gado.

Revendo recentemente as 4 primeiras temporadas, ficou ainda mais claro aquilo que eu não prestei tanta atenção na época. Na ânsia pelo resultado, frequentemente deixei passar o jogo. A trama principal, versando sobre uma conspiração mundial envolvendo raças extraterrestres, era apenas um sedutor cenário para as observações políticas de Carter. Uma conspiração onde governos e pessoas do alto escalão disputam posições para o jogo do milênio, prafraseando S.R. Hadden, é quase que o diário de bordo das entranhas do poder.

A questão é, se após um run com temporadas finais bastante desgastadas, um longa apenas razoável e outro ruim, Arquivo X ainda encontraria relevância conceitual nos dias atuais. Pelo que foi demonstrado nos dois episódios de estreia, não só a encontrou, como deitou e rolou com ela.

De forma esperta, o roteiro praticamente não encosta na estrutura consagrada. Estão lá Fox Mulder e Dana Scully - e é sempre um prazer rever esses dois - começando de onde tudo parou na última temporada e em Arquivo X: Eu Quero Acreditar. Ambos completamente fora do radar, apenas para serem jogados no tabuleiro novamente com uma facilidade que só o contexto de Arquivo X consegue permitir sem descer esquisito.


A abertura do episódio de estreia ("My Struggle"), dirigido e escrito pelo próprio Chris Carter, é um must-see para fãs. Com uma sequência reunindo vários momentos - e monstros - clássicos da série nos anos noventa, incluindo promos publicitários famosos seguidos por aquela abertura, uma narração de Mulder faz um resumo hipercompacto do perrengue enfrentado até ali - curiosamente sem referenciar a fase final da série, protagonizada por John Doggett (Robert Patrick) e Monica Reyes (Annabeth Gish). A trama traz um lauto delivery de paranoia conspiratória e, como não poderia deixar de ser, é focada nas relações do governo dos EUA com uma suposta invasão alienígena começando no infame incidente em Roswell.

Velho conhecido do público, mas ainda cheio de desdobramentos intocados, o plot avança vários capítulos dentro da mitologia. E isso inclui uma grande reviravolta que, não somos bestas, pode ou não ser verdade. Dentro da mesma lógica, as novas revelações entrariam em contradição com vários elementos notórios de Arquivo X. Nada que mais tarde não seja explicado/expandido/evoluído/escrutinado. Ou, na menos ambiciosa das hipóteses, desmentido.

Especialmente interessante é ver David Duchovny e Gillian Anderson de volta aos elegantes blazers do FBI. Anderson é atriz de teatro, atua com tração nas 4 rodas. Mas Duchovny ainda era uma incógnita. Ainda que Fox Mulder seja o personagem da sua vida, quem acompanhou as peripécias de Hank Moody em Californication certamente teve dúvidas se ele ainda convenceria como o obsessivo e atormentado Fox Mulder. Mas é mesmo como andar de bicicleta. E um exemplo de raro ménage à trois de um ator com dois personagens icônicos.

Mitch Pileggi, o eterno diretor-assistente Walter Skinner, também retorna tão naturalmente que parece que nunca deixou a sua sala no Bureau. A postura severa e rabugenta com uma disfarçada afinidade por Mulder e Scully ainda é rigorosamente a mesma. Não tive como não lembrar da época em que, sem TV por assinatura, eu corria atrás dos episódios de Arquivo X (em locadoras longínquas ou perdidos pela programação aberta) como uma verdadeira caça ao tesouro. Outro grande resgate - surpresa - dá as caras em certo ponto e foi certamente algo muito gratificante para os espectadores veteranos.

E ótima a participação de Joel McHael (o Jeff Winger, de Community), aqui no papel de Tad O'Malley, celebridade reacionária de internet e zilionário que nutre interesses em comum com Mulder e Scully. O personagem é promissor.


"Founder's Mutation", o segundo episódio, segue a cartilha da trama paranormal, já remontando aos bons e velhos "episódios de monstro da semana". Inclusive a mesma premissa já foi utilizada algumas vezes nos runs iniciais, sendo aqui atualizada em dinâmica e produção.

Dá pra antecipar a conclusão desde o começo, mas a narrativa tensa, lembrando Scanners nos melhores momentos e as quebras bem-humoradas (orbitando em torno de "modernidades" como Google, Uber e smart phones) garantem a diversão com folgas. E também tem os momentos mais densos deste (re)início, ao abordar um acontecimento traumático da vida dos agentes.

Concebido como uma mini-temporada de 6 episódios, esse breve retorno de Arquivo X não nega sua natureza revivalista - e não há nada para consertar onde não está quebrado, certo? Em tratando da carreira instável da série, mais ou menos. Mas isso também faz parte da descoberta, da diversão. E da verdade.

Logo mais tem outro.

2 comentários:

lendo à bessa disse...

Até agora, a coisa vem melhorando com o passar dos episódios, mas sempre fico com a sensação de que era melhor ter deixado a série lá atrás, apesar do final meio broxa da 9a temporada e do 2o filme, ou então fazer uma minissérie que fechasse a coisa toda de vez.
Mas vamos acompanhando em respeito ao legado e ao lugar que Arquivo X tem no lado esquerdo do meu peito.
Quando vi o 1o episódio a memória foi lá na Record...
Coisa engraçada: Luwig disse no twitter (um primo e meu irmão comentaram a mesma coisa) que vê o Duchovny em ação e só lembra do Hank Moody, vai ver que isso não tem ajudado a convencer ahahahhaa
Abraço o/

doggma disse...

Então, Do Vale, até comentei com colegas sobre a "persona Hank Moody" que praticamente se fundiu ao Duchovny nos últimos anos. Da minha parte, isso durou até a abertura original sendo reeditada nessa nova minissérie, com efeito acachapante. Como você bem lembrou, o flashback da série na Rede Record (meu 1º contato com Arquivo) voltou com tudo à mente...

Abraço!