quarta-feira, 27 de março de 2019

Girl, You'll Be a Danvers Soon


Às vezes, uma parte supera o todo. E no caso de Capitã Marvel, são várias as partes: o plot intrigante com flashbacks e reviravoltas, a origem simplificada que unifica toda a tralha cronológica da personagem nos gibis, o subtexto feminista pero sin perder la ternura, a ambientação na década do Nirvana, o orçamento parrudo garantindo um elenco de responsa, o CGI de grife. Por último, e o mais importante: uma Carol Danvers show-de-vizinha envergando delícia o uniforme da heroína.

Então por que Capitã Marvel é o filme mais sem sal da Marvel Studios até agora?

Antes, minha reverência ao mero fato de existir um filme da Capitã Marvel; também conhecida no dialeto marvete como Miss Marvel, Binária e Warbird. Isso era algo impensável até outro dia, fruto apenas de meus devaneios com a Feiticeira Joana Prado num maiôzinho preto cavado com um raio amarelo estilizado. "Depois dela, não tem pra mais ninguém..."

Mas claro, isso foi antes de mergulhar no mythos da heroína e no ethos de sua trajetória, o que me fez tridimensionalizá-la (droga). Em termos de carreira editorial, Carol Danvers é Amélia desde o Dia 1. Difícil não ficar penalizado após uma overdose de Miss Marvel safra 1968-2000 direto no lobo frontal. O mundo é machista, cinzento e cruel, mas graças a Stan Lee, os piores dias ficaram de fora da adaptação.

O filme tem início no outro lado da galáxia, no coração do Império Kree. Vemos a protagonista sendo treinada por seu mentor Yon-Rogg e integrando o grupo black ops Starforce. Amnésica e atormentada por déjà vus e pesadelos recorrentes, ela detém poderes vastos e quase incontroláveis. Por isso é vista pela entidade Inteligência Suprema como a chave para a vitória Kree na guerra contra os perigosos transmorfos Skrulls. Após uma missão conturbada, ela vai parar acidentalmente na Terra. Lá (ou aqui?), a heroína une forças com Nick Fury, Agente da S.H.I.E.L.D.®, e juntos investigam pistas que podem revelar a sua verdadeira origem.

Que um raio cósmico do Mar-Vell me parta se esse não foi um resumo conciso e sem spoilers.


Já elocubrei muito sobre como arrumariam a zona disfuncional que é a timeline de Carol Danvers nas HQs. Mas até que fizeram uma boa triagem do revamp setentista de Chris Claremont, eliminando a clicherama donzela-em-perigo prévia e usando a Guerra Kree-Skrull como ponte até a fase "on the road no espaço sideral" de Kelly Sue DeConnick, mais recente.

Isso rende até uma metáfora (de boteco) ao ilustrar o choque entre o feminismo clássico e o feminismo do milênio: no início, Carol luta para conquistar respeito em territórios tradicionalmente masculinos (corridas, exército, trabalho); no fim, tem a "iluminação": ela não precisa provar nada para ninguém e seu lugar no mundo - ou, no caso, universo - é onde ela bem entender. O sutiã em chamas de ontem é o "meu corpo/vida, minhas regras" de hoje. Isto posto em perspectiva sóbria, sem panfletos e não-intrusiva; embora deva passar reto para quem acha que mulher na vertical, só na frente de um fogão.

Méritos para o casal de diretores Anna Boden e Ryan Fleck, que assina o tratamento final do roteiro com Geneva Robertson-Dworet (do Tomb Raider 2018, naturalmente) e que, em muitos pontos, até revitaliza o surrado motif original. Um exemplo foi abrir o filme no planeta Kree com Carol tendo flashbacks da Terra, invertendo a ordem do que foi feito nos gibis e que era um porre.

Outra boa sacada foi a origem per se da Capitã Marvel, consumando a Jornada do Herói da Heroína com um ato de coragem, altruísmo e sacrifício. Bem mais digno que a explosão acidental que vitimou Carol nos gibis e a deixou em coma por quase 10 anos até ser reinventada. Ao meu ver, foi um dos melhores gatilhos de superpoderes da Marvel no cinema, senão o melhor. Simplesmente por uma questão de atitude. Some fuckin' attitude.

Estabelecer a trama na 2ª metade da década de 1990 serve aos propósitos da Fase 3 do Universo Cinematográfico Marvel e rende mais que o simples valor estético; o que inclui aí a camiseta do Nine Inch Nails, hoje até meio hipster se for analisar. Mas não muito. A trilha rádio rock FM é mais reconhecível e efetiva que o Best Of über-rebuscado dos Guardiões da Galáxia, embora se mostre pentelha em um ou dois momentos do filme - mas já volto aí.

As piadas envolvendo as maravilhas tecnológicas da época, como o modem 56k, o CD-Rom e o Windows 95, são tão inevitáveis quanto irresistíveis. Mesmo repetitivas, funcionam, talvez por serem podreiras ainda recentes na memória; particularmente, pelas pequenas tragédias diárias estreladas por essas divas high-tech em ambientes de trabalho. E com uma deadline esmurrando a porta...

Mas o troféu cata-piolho noventista vai para a ponta do eterno Stan Lee lendo o script do crássico Barrados no Shopping (Mallrats, 1995). Kevin Smith deve estar liquefeito até agora.

Ok, ok, mas plenos anos 90 e não rola uma ceninha da Capitã Marvel com um pôster "I Want to Believe"? É como perder um gol daqueles que não se perde...

Porém, essa mesma cara noventista reverbera na dinâmica narrativa e faz a canoa virar, olê olê olá. O storytelling é burocrático e boa parte da trama é dedicada à tal investigação de Carol e Fury, que, além de tediosa, é inútil àquele ponto: toda a verdade será entregue de bandeja num momento-chave logo mais e reiterada depois num flashback estendido. Bem diferente da subtrama investigativa de Capitão América 2: O Soldado Invernal, só pra ficar num paralelo tramado de forma eficiente.

Mesmo as cenas de ação são bastante datadas em conceito e executadas no piloto automático. A esta altura, quantas vezes já vimos sequências com heróis e super-heróis lutando em cima, dos lados e dentro de um trem? Ou perseguições de carros num centro urbano? Isso até funcionaria, pela enésima vez, em toda a sua glória noventista clichê-bagaceira, se fosse conduzido com inspiração em craques como John McTiernan, Richard Donner, John Woo, Walter Hill e o saudoso John Frankenheimer. Ou até mesmo o Jan de Bont na veia absurda e divertidíssima do 1º Velocidade Máxima.

Infelizmente, o que temos pra hoje é o casal Boden/Fleck, que decididamente tem pouca intimidade com cinema de ação.


As sequências/coreografias de luta estão no padrão, com uma estrelinha na testa da protagonista. É bem convincente no quesito garota-chutando-bundas-de-marmanjos, o calcanhar de Aquiles de toda película com garotas-chutando-bundas-de-marmanjos. Talvez seja o resultado dos treinamentos, mas o mais provável é que tenha gostado da brincadeira.

No campo dos superpoderes, o processo é desenvolvido gradualmente, o que aumenta o impacto na reta final, com a Capitã detonando cruzadores no espaço como se fosse o Surfista Prateado - e visualmente lembrando a Fênix Negra, apesar da referência ser a fase Binária. De fato, parece a personagem mais poderosa do UCM, superando até o Thor com o Rompe-Tormentas em Vingadores: Guerra Infinita. E aí surge outro problema - e grave: a ausência de um antagonista à altura. Lembra de Hancock?

Capitã Marvel faz parte da lista de filmes vacilões que não providenciaram um supervilão para seus super-heróis. O silêncio da contrapartida inexistente é gritante (daqui a dois minutos não lembrarei o isso significa, mas neste momento faz sentido). Uma boa opção teria sido Ronan, o Acusador, reprisado no filme pelo ótimo Lee Pace, mas é criminosamente desperdiçado. Sobrou o quê? Os dublês da Starforce. Os Skrulls que já apanhavam de Carol quando ela suprimia seus poderes. A paciência do espectador.

Outra bobagem é o hype marketeiro montado ao redor da gatinha Goose, interpretada pelos promissores felinos Gonzo, Rizzo, Archie e Reggie (olho neles). Achava que o bichano seria um MacGuffin ao estilo Orion, do 1º M.I.B., mas é uma cruza de The Thing com o Groot adulto. E tiveram a desfaçatez de copiar uma cena antológica do Groot no 1º Guardiões, quando Goose abate uma fileira de soldados Kree num corredor.

Isso me leva às derrapadas individuais. Samuel L. Jackson exagera no humor de seu Nick Fury. Não é como se o agente fosse um novato com zero traumas. Ele inclusive lista as várias zonas de guerra em que já esteve, então é no mínimo estranho seu perfil gaiato apenas 12, 13 anos antes de Homem de Ferro. Mas aqui ele é somente um alívio cômico às raias do pastelão.

E cá pra nós... que razão tosca pro Fury ficar caolho, hein. Faça-me o favor.

Jude Law até começa bem como Yon-Rogg, mas é prejudicado pela reviravolta no meio da história, que ignora todo o conflito pessoal/ético inerente à situação e o obriga a zerar completamente sua relação com sua ex-protegée/colega/talvez-ficante. Maniqueísmo total.

Da mesma forma sucumbe o excelente Ben Mendelsohn no papel de Talos, o líder Skrull. Inicialmente disposto a tudo para cumprir sua missão, Talos muda de personalidade a partir da fatídica reviravolta. Ele até comenta que toda guerra tem muitos lados, como que preparando o terreno - até aí tudo bem. Mas Skrull bonzinho e conciliador logo na estreia, não dá. Nem ambiguidade moral rola; e deveria rolar, já que é uma guerra, oras. E são Skrulls, pelo amor do Kirby.

Piora-plus: conforme visto na prévia, o visual Skrull ficou mesmo a dever e quase não dá para associá-los aos aliens queixudos dos gibis.

Piora-extra-plus: além de tudo, a prótese/máscara engessa o rosto dos atores, atrapalhando bastante a fala. É constrangedor ver o Mendelsohn lutando pra cuspir algumas palavras pra fora da mordaça de látex. Inacreditável.

Lashana Lynch faz o possível pela sua Maria Rambeau, velha amiga de Carol (e mãe da pequena Monica, outra Capitã Marvel dos quadrinhos). O problema, mais uma vez, é a narrativa pontuada por flashbacks: apesar da grande entrega da atriz, não há uma química entre as duas, simplesmente porque Carol tem pouca ou nenhuma ligação emocional com sua vida pré-Kree. Sem troca, sem cumplicidade. O que vemos são apenas fragmentos da amizade entre as duas e Carol aceitando este fato de forma impessoal.

Já Annette Bening é apenas uma coadjuvante de luxo. Não ao exemplo das coadjuvadas de luxo de Michelle Pfeiffer em Homem-Formiga 2 e Robert Redford em Cap 2, onde eram relevantes e cruciais para o enredo, mas de forma titular, quase reverente. Mal dá para especificar de maneira concreta os papéis que ela desempenha, visto que um deles é uma lembrança distorcida e o outro é um holograma da Inteligência Suprema.

E voltando à deixa musical, "Come as You Are" rolando num toca-discos durante seu confronto com Carol foi um exagero estético. Sem contar a contradição da letra para aquela situação... Quem queria ver o Wilson Fisk versão amoeba alienígena se revelando em algum momento, saiu emburrado da sala.


E Brianne Sidonie Desaulniers, a Brie Larson. Pra mim foi surpreendente a escolha da atriz de O Quarto de Jack e Free Fire: O Tiroteio. Mesmo que a aura de musa indie não se traduzisse em "plano de carreira cult" (vide Kong: A Ilha da Caveira, que ela protagonizou de topzinho molhado ao lado do L. Jackson), um blockbuster-de-super-herói-da-Marvel era anos-luz além do que eu esperava dela pelos quadrantes mainstream. Adorei.

Sua Carol Danvers é teimosa, impulsiva e sagaz. É única. Há um certo desencontro entre seu tom discreto e cool com o clima frenético da produção, mas ela está à vontade no uniforme azul e vermelho. E com um carisma provavelmente maior do que qualquer uma das tentadoras opções; Amber Heard, a Mera, me vem à mente agora... mas tal qual um canto da sereia, não creio que resultaria em um final feliz, especialmente quando se exige maiores recursos dramáticos.

Para melhorar, o timing pessoal da Brianne é admirável, inclusive ao despertar a ira de fanboys analfabetos funcionais. Nada melhor para esquentar os ânimos. Considerando que um dos primeiros inimigos de Carol Danvers nas HQs se chamava Patriarca, fecha-se aí mais um ciclo.

No geral, Capitã Marvel fica a dever. Longe de ser ruim; tem seus momentos e conceitos bacanas que, trabalhados a contento, teriam dado um filmaço. Mas no fim, a falta de ousadia e de culhões na direção cobra seu preço: é só um passatempo agitado e fugaz no espectro aventura/sci-fi, coisa que nem os debuts medianos do Thor, do Capitão América e do Dr. Estranho foram.

É, portanto, um filme sem sal.

Mas confesso: assim como certas coisas na vida, também tenho uma quedinha por filmes sem sal. Depois da 1ª vez, só melhora...

Ps: ao menos o Killing Joke embolsou um gordo royaltiezinho.

2 comentários:

Marcelo Andrade disse...

"I Want to Believe"...obrigado por me lembrar que estava faltando algo...aquela decada muitos ficavam aguardando os proximos episodios e ver aqla deusa fazendo caras e bocas (continua deusa na minha opinião)s/ contar que naquela epoca tinha uma otima diversidade musical p/ explorar numa trilha sonora.Fui ao cinema ja esperando o basico e gostei mas admito que como leitor de quadrinhos (ja se passaram decadas) sempre fica aquele QUERO +.
A aberturas c/ o Stan me encheu os olhos d'agua...complicado...
Abraços e no aguardo.

doggma disse...

E aí, Marcelo!

Bem lembrada a intro em homenagem ao Stan. Foi tocante mesmo. Admito que fiquei um tanto emotivo com aquilo na hora.

Vou te falar que ainda fico babando pela Deusa (ainda hoje, sim!) sempre que revisito algum dos boxes da série...

Abração e uma excelente semana!