sexta-feira, 19 de agosto de 2022

“Let me stand next to your fire...”


Assistindo Desastre Total: Woodstock 99 (Trainwreck: Woodstock '99, 2022) tive a sensação de viajar no tempo, mas num outro espaço. Acompanhei o festival a exatos 7.622 km e dois fusos horários de distância do epicentro: no conforto do meu lar, estirado em minha poltrona favorita, com tira-gostos variados e rodadas incessantes de caipirinhas e latinhas de Skol (outra época!). Na tela, headliners raivosos, som no talo e um maremoto humano ensandecido — com pintos e peitos à mostra e balangando via satélite — que ainda hoje deixa atônitos até habitués em megafestivais.

Tudo levava a crer que estava testemunhando a experiência rock and roll definitiva. Mal sabia do inferno social e humanitário que estava se desdobrando ali em tempo real. Ou melhor, até desconfiava...

Lembro que, a certa altura, um VJzinho qualquer pergunta a um garoto sobre as cenas de violência e quebra-quebra da noite anterior. Ele é categórico: "cara, você tem Limp Bizkit, Rage Against the Machine e Metallica se apresentando um depois do outro... queria o quê?"

Aquele momento, vindo de um guri ressacado, foi didático. A escalação do palco principal não tinha a menor ressonância com os auspícios de paz & amor do icônico Woodstock. Foi uma estratégia adotada já na edição de 1994, quando a marca foi ressuscitada no vácuo das primeiras edições do bem-sucedido Lollapalooza. A gasolina estava lá, só faltava o fogo.

Dividido em três episódios, o documentário da Netflix explora esse e outros pontos nevrálgicos que levaram o Woodstock 1999 a uma quase tragédia sem precedentes. O trabalho de pesquisa e resgate de imagens de arquivo é espetacular. E o diretor Garret Price também sabe do peso dos depoimentos de quem esteve in loco e faz uma boa seleção de woodstockers, com artistas, jornalistas, membros do staff do festival e do próprio público.

E ainda foi esperto — e sortudo — o bastante para colher a versão dos promotores Michael Lang e John Scher. Afinal, eles tinham muito que explicar.



Logo nos primeiros minutos, duas cenas surreais dão conta que até os deuses tentaram avisar: o então prefeito local Joseph Griffo inaugura o evento com a tradicional quebra da garrafa de champagne e só consegue na 9ª tentativa; e o momento em que o Soul Brother Nº 1 James Brown recebe o espírito do Rei do Soul Tim Maia (falecido um ano antes) e se recusa a estrear o palco principal enquanto não receber o cachê integral antes do show, mesmo com a banda já tocando a introdução e o público urrando.

Mas o doc não deixa dúvidas sobre quem foram os grandes vilões do evento: os preços hiperinflacionados e as deficiências de infraestrutura.

O Woodstock '99 foi realizado numa antiga base aérea americana, situada em Rome, NY. É um monstro de 3.600 acres onde cada direção era uma verdadeira peregrinação sob o sol escaldante do verão americano. Para economizar nos custos (e, talvez, amortizar um pouco do prejuízo da malfadada edição de 94), a produção contratou seguranças com pouca ou nenhuma experiência, batizou o contingente de "Patrulha da Paz" e tudo certo.

Outra grande ideia para as contas bancárias foi simplesmente não pagar as prestadoras responsáveis pelo saneamento e fornecimento de água, incluindo aí a manutenção dos banheiros químicos. Tenha em mente um público estimado em 200 mil pessoas ao longo de quatro dias e o resultado é um só: o horror, o horror...

O que veio a seguir foi de revirar o estômago. Aquelas imagens eternizadas na cultura pop do público coberto de lama, mergulhando na lama, rolando na lama e até pegando jacarezinho na lama... adivinha: não era lama. Era merda. Muita merda. Merda pra tudo que é lado. Mesmo num calor senegalesco, a falta d'água era frequente nas bicas e nos chuveiros distribuídos na área, mas talvez fosse até uma providência do destino — testes feitos durante o festival constataram que toda a rede de água estava severamente contaminada por fezes. Eles sabiam. Só não avisaram ao público.

E com as barracas de comida e bebida enfiando a faca sem dó (garrafinha de água: US$ 4) era como vislumbrar a derrocada dos antigos ideais, agora pervertidos pela ambição e pelo materialismo. Era o fogo que faltava. Cansado de ser maltratado, humilhado e explorado, o público se voltou contra tudo e contra todos. Inclusive contra ele mesmo.

De certo modo, foi um intensivão de neoliberalismo.


O diretor Price consegue achados tragicômicos em meio aos crescentes riots, como o momento em que um dos membros da equipe faz uma barricada na porta do escritório, como se estivessem cercados por zumbis. E não hesita em se aventurar por terrenos controversos, como o dilema dos artistas de rock pesado num ambiente instável. Pelo contrário. Korn fez um show visceral, com a vantagem da escalação no primeiro (e relativamente calmo) dia. Mas é difícil não ficarmos menos do que convencidos que o Limp Bizkit e seu frontman Fred Durst acirraram bastante os ânimos já exaltados. E que os caras do Red Hot Chili Peppers podiam ter ido dormir sem tocar "Fire" bem no momento em que se propagavam os incêndios que marcaram o fim do festival.

Desastre Total eventualmente cede a algumas concessões. É nítido que Metallica e Rage Against the Machine foram poupados. No caso do primeiro, lembro bem do coro de "Die! Die!", que a banda sempre puxa no meio de "Creeping Death", destoando de toda a estética psicodélica-flower power do evento. E no caso do Rage e sua incendiária apresentação, ao menos foi registrada a arrepiante cena da turba repetindo o mantra/grito de ordem "Fuck you, I won't do what you tell me" enquanto destruíam, pilhavam e violentavam tudo pelo caminho. Mas dá pra botar na conta da metragem.

Não ajudou a romantizada que deram no Woodstock original. Ficou parecendo um piquenique de fadinhas e hobbits no Condado. E não foi nada disso. Outra bola fora envolve a pior faceta do festival, que foram os vários casos de estupro. Já estava quase no final do último episódio e achei que o assunto não seria sequer mencionado, o que teria dado perda total no doc. Mas foi. Em algo como cinco minutos. Pois é.

Também é traçado um perfil da mentalidade machista e privilegiada do jovem-branco-de-fraternidade que predominou no festival. O que foi um dedo na ferida admirável.

A narrativa aniquila qualquer impressão sobre o promotor John Scher que não seja a de um businessman negligente e ganancioso. Mas curiosamente patina em assimilar a figura serena e enigmática de Michael Lang, falecido pouco depois as filmagens. Ele foi co-idealizador e promotor do festival original e, pelas imagens da época, já era um personagem e tanto. Merecia um doc à parte.

O Woodstock '99 teve apenas 4 dias, mas, pelo jeito, rendeu assunto para 23 anos. E contando...

4 comentários:

Yuri Saladino disse...

Eles deveriam ter dedicado um episódio inteiro para discutir os estupros cometidos durante o evento! Cinco minutos? É pouco demais! Eles deveriam ter dado vozes as sobreviventes da violência sexual do Woodstock 99!

doggma disse...

Devia ter ocupado ao menos a segunda metade do último ep, Yuri. E, sim, com algumas das vítimas, se elas assim quisessem. Mas provavelmente consideraram que seria pesado demais.

VAM! disse...

Doc Impressionante.

O mergulho na piscina de fezes, deu ânsia de vômito. E oque achei mais surpreendente de tudo é que ninguém morreu naquele caos total.

Abs,
VAM!

doggma disse...

Então, VAM!, apesar de não ser mencionado no doc, três pessoas morreram no W99 (dois homens e uma mulher). O que foi, da mesma forma, surpreendente. Podia ter sido muito, mas muito pior...