domingo, 24 de março de 2024
Báthory Bloody Báthory
Quando Erzsébet foi publicado pela Zarabatana Books em 2017, o editorial tratou de conferir uma aura de mistério em torno do autor. Comercialmente falando, uma malandragem pro. Mas, de fato, pouca coisa se sabia sobre Nunsky. Apenas que ele era do norte de Portugal, cantava numa banda psychobilly (The ID's) e exercitava seu lado quadrinista muito sazonalmente em zines e autorais underground. Ou seja, uma figura quase tão obscura quanto o BZ. Mas o "mistério" não durou muito tempo.
Hoje, sabemos que seu alter-ego é Cláudio Roberto Martini (quem?!), que mantém uma conta no Facebook onde posta tirinhas e projetos (quase) regularmente e que, sem dúvida, Erzsébet é a sua obra mais ambiciosa e fascinante até aqui.
A proposta da HQ é montar uma espécie de biografia livre da Condessa Elizabeth Báthory de Ecsed – Báthori Erzsébet, em seu húngaro nativo. Apesar de ser uma figura histórica bastante conhecida, ela contabiliza poucas bios, entre elas os filmes Condessa de Sangue, de 2008, com a ótima Anna Friel, e A Condessa, de 2009, dirigido e protagonizado pela Julie Delpy, além da BD francesa A Condessa Vermelha - Erzsébet Bàthory, publicada aqui em 1987 pela Martins Fontes.
Todas elas versões de autor, com toda a liberdade criativa e acuracidade histórica irregular que se espera. Em Erzsébet não é diferente, mas é das mais intrigantes. Capturar a vida e obra da Condessa Vermelha é um trampo capcioso. Mas temos lá o mythos que cruzou séculos rumo à eternidade e que Nunsky usa como mapa.
Elizabeth Báthory (1560-1614) é uma nobre de uma poderosa família dona de vastas propriedades no Reino da Hungria, onde exerce uma profunda influência política e militar. Bem educada e criada sob os rigores do calvinismo protestante, a jovem Elizabeth sofre com enxaquecas e crises de epilepsia. Se casa aos 15 anos com o Conde Ferenc II Nádasdy – um arranjo político que faz das duas famílias praticamente as donas da Transilvânia e da Hungria. Nádasdy logo assume o comando do exército e entra em guerra com os Otomanos (sempre eles!). As campanhas duram meses, o casal pouco se vê depois disso.
Durante os períodos de solidão, vagando pelo castelo sob a marcação de sua sogra religiosa e severa, Elizabeth desaba em uma espiral de insanidade. O que começa com crueldades imprevisíveis e gratuitas contra os criados, assume contornos psicopáticos, com a condessa arrancando nacos de carne e sorvendo o sangue de suas vítimas. Se o Leste Europeu não fosse entupido de lendas Strigoi, diria que o Bram Stoker (1847-1912) se inspirou muito ali. Mas a coisa escala mesmo após a morte de Ferenc.
Buscando a juventude eterna, Elizabeth passa a se banhar em sangue humano. A fonte: jovens virgens filhas de plebeus camponeses, considerados cidadãos de 5ª classe pela aristocracia. Fora de suas famílias, ninguém daria falta e/ou se importaria com elas. E começa uma orgia sem limites de carnificina e sangue que contabiliza mais de 650 vítimas.
Eventualmente, a condessa acaba se deparando com escassez de matéria-prima – afinal, após tantos sumiços, os vilarejos passam a evitar o castelo e seu entorno – e ela se vê obrigada a buscar seus insumos nas jovens da nobreza. E é aí que as autoridades começam a se importar.
Elizabeth é pega com a boca na botija (ou na artéria) durante uma revista feita em seu castelo por György Thurzó, Grão-Paladino da Hungria e também o seu primo. Talvez por isso, e pelo brasão de sua família, tenha escapado da fogueira. Elizabeth é julgada e condenada ao confinamento em um quarto selado com blocos, onde permanece até a sua morte, três anos depois.
Fim da história, início da lenda.
A composição estética é o aspecto mais poderoso da narrativa de Nunsky. O release propõe uma cruza entre os estilos de Charles Burns e Jaime Hernandez, no que concordo mais ou menos. Tem muito mais ali das artes medievais, povoadas por figuras chapadas e rígidas – com o diferencial da perspectiva, inexistente nas gravuras clássicas. O quadrinista aplica essa característica de forma sagaz, construindo várias passagens mortificantemente silenciosas que dispensam descrições textuais, mesmo com grandes quantidades de informação atreladas. Ele confia plenamente em sua capacidade gráfica e, mais ainda, na capacidade intuitiva do leitor.
Fora que isso deixa tudo mais macabro e perturbador. Afinal, se estabelece ali uma conexão psicológica quadrinho-leitor que não deveria nem existir em uma mente sã e pura. Viva?
Na HQ, Nunsky veste a camisa do thriller, do terror gótico, o que faz primorosamente. No que tange ao contexto e ambientação da bio, porém, o autor opta por uma leitura mais enxuta. As extensas ramificações da família Báthory e o complexo cenário sociopolítico da região (algo como um Game of Thrones on crack) são explorados apenas superficialmente. Elizabeth teve cinco herdeiros, sendo 3 filhas e 2 filhos. Todas figuras históricas relevantes da época. Isso sem contar os dois filhos não confirmados – um deles com um plebeu, inclusive, quando ela tinha 13 anos. O quadrinho suprime esses fatos, registrando apenas um parto.
Um detalhe curioso sugerido em Erzsébet é que o comportamento doentio da condessa começa exatamente após uma de suas violentas enxaquecas. Não sei se chega a ser uma sugestão de gatilho para suas atrocidades posteriores, mas o fato é que ela não volta mais a sofrer com as dores. Teria sido ali o ponto zero de uma mente enferma?
Uma especulação que parece um grão de areia na praia dessa história.
Hoje, é sabido que havia muito mais por trás da lenda da Condessa Sanguinária. Por exemplo, os 300 depoimentos colhidos para seu julgamento, que ainda constam no Arquivo Nacional Húngaro, são de pessoas que apenas ouviram falar das mortes. Seus quatro servos que supostamente a ajudaram, confessaram os crimes sob tortura – e foram rapidamente para a fogueira após as confissões.
A quantidade de terras, castelos e bens acumulada pela família Báthory era incomparável. E ficou ainda mais concentrada após a morte de Ferenc, o que teria desagradado os aristocratas do reino. Alguns deles, inclusive da Corte da Habsburg, deviam somas vultosas aos Báthory. Fora isso, ainda havia conflitos de interesses entre seus filhos, netos e outras casas influentes (lembra das maquinações Game-of-Thrônicas?). Elizabeth virou um alvo fácil.
Aliás, o famoso carro-chefe da lenda – os banhos de sangue para preservar a sua juventude – foi mencionado pela 1ª vez apenas em 1729, pelo jesuíta László Turóczi. Mais de um século depois.
Elizabeth Báthory pode ter sido uma das assassinas mais cruéis da História. Ou vítima de um dos assassinatos morais mais cruéis da História.
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2 comentários:
Desconhecia completamente essa história (ou História), Dogg. Fascinante é pouco. Incrível eu não ter topado sequer com um desses filmes. Ainda que a arte seja um colírio, li suas linhas imaginando o chiaroscuro de um Mignola de outra vida. Talvez aquele mesmo bastardo da adaptação de Drácula.
Fala aê, Luwig!
Me surpreendeu, chefe. Nos gibis, ela tem séries e minis por várias editoras. E virou personagem tanto na Marvel quanto na DC.
Putz, um chiaroscuro daquele Mignola noventista, ai, ai...
Em O Despertar do Demônio, ele chega a referenciar a dama de ferro usada pela Báthory:
https://orlyman.tumblr.com/post/62453584073/hellboyfansinhell-hellboy-vs-ilsa-haupstein/amp
Se bem que o Nunsky foi tão efetivo que, durante a leitura, você não pensa em nenhuma outra opção. É imersão total. Só depois, quando reflete a respeito, como fazemos aqui. Aí vem o Mignolão raiz, Sean Phillips, Jorgito, Charlie Adlard, Eddie Campbell... todos esses parece que nasceram para retratar a Condessa.
De qualquer forma, ponto para a Zarabatana Books. A editora praticamente evaporou nos últimos anos, mas deixou alguns bons gibis.
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