Sabe aquele papo de que os hábitos de consumo de uma pessoa podem denunciar seu perfil e seus gostos? Pois então... se tem um hábito que pode denunciar de forma bem delineada gostos, costumes, pensamentos etc. é a lista de filmes alugados de um fulano qualquer (como se isto ainda fosse necessário num mundo pós-orkut). Normalmente a única regra que sigo é a da Santa Trindade. Sempre pego três. No mais, sou completamente caótico, um filme não tem nada a ver com o outro, alguém que viesse a analisar meu comportamento seguramente opinaria por um Distúrbio de Múltiplas Personalidades, mas no fim de semana que passou estranhamente peguei filmes que tinham mais ou menos coerência entre si. Todos eles do tipo que chamam por aí “cabeça”. Todos eles com algum tipo de mensagem. Todos eles te levando por um passeiozinho pelo inferno, com durações diferentes é verdade, mas com a ressalva de trazerem o lado positivo de tudo. Sempre achei que este negócio de ter que passar uma mensagem nem sempre é bom, pois o distanciamento de percepções entre diretor e espectadores pode ser abissal, e quanto mais subjetiva (e este não é o único parâmetro de distanciamento) a obra, mais propícia a tomar rumos diferentes nas nossas cabeças do que fora pretendido pelo idealizador/desenvolvedor do filme.
Pois bem, os filmes deste fim de semana, deixando de lado o Batman da telona, foram Anti-Herói Americano (American Splendor, 2003), Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera (Bom Yeorum Gaeul Gyeoul Geurigo Bom, 2003) e Pi (idem, 1998) – a piadinha do 3,14159 já era, né?
O primeiro, sendo bem sincero, achei bem chato, o que fez-me sentir culpado já que reproduz a vida de um cara nerd, cheio de manias e Zé Ninguém. Devia me identificar com ele ao invés de achá-lo chato e isto me traz conclusões reflexivas ruins, mas deixa para lá... pelo menos confirmo que Paul Giamatti realmente é um bom ator.
O segundo é belíssimo. O filme inteiro tem cenas de uma beleza extasiante. Pena que o distanciamento de culturas me faz perder uma pá de simbolismos que passam pela tela, mas que o filme é bonitaço, não há dúvida. A história é até bem básica na sua metáfora sobre fases da vida, ensinamentos e estações do ano, mas o que importa é ficar vendo aquile desfile de imagens desbundantes. Se botar um insenso, tacar aquilo numa telona e atolar a cara no saquê (tá legal que o filme é coreano, mas não sei qual o destilado padrão de lá, então vai o genérico oriental mesmo), dá para atingir uns cinco níveis de super e sub consciência ao mesmo tempo... mó viagem.
Já o terceiro... bem.. o que dizer do terceiro? Não nego que a escolha dos três foi motivada pelas indicações de várias pessoas, mas a única unanimidade era Pi. Todo mundo que falava de Pi referia-se a ele como obra-prima que, não vista, acarretava expiação de pecados no inferno e coisa e tal. Como não estava a fim de meter-me com o tinhoso e não achava o dito nas locadoras comuns perto de casa, apelei para uma on-line que entrega lá no meu trabalho (e nem nesta acho Primer).
Veria o filme no sábado, mas entrei na ciranda louca de hospedagens para o post anterior (servicinho que apostava em 1 horinha e durou 2 dias) e acabei só podendo assistí-lo no fim do domingo. Então veio o sono, a segunda-feira, o sono, a terça-feira e ainda não cheguei à conclusão alguma... há momentos no filme que quase me fazem parar tudo e quebrar o DVD em 15 partes, entoando cânticos indígenas para espantar o já citado tinhoso, mas logo depois sinto-me envolvido, com estes momentos alternando-se constantemente, levando-me numa viagem lisérgica fortíssima e não sei ainda se entendi o que passa por trás das imagens aparentemente sem sentido. Tem horas que me sinto vendo aquele filme de Buñuel, O Cão Andaluz (Un Chien Andalou, 1929) - acho que é isto, prestes a me deparar com a lâmina no olho.
Não é de espantar, já que foi dirigido por Darren Aronofsky, mesmo diretor de Réquiem para um Sonho (Requiem for a Dream, 2000), filme dissecado pelo Doggma aqui ano passado e já revelava esta tendência bem particular de viagem pelo inferno. Não à toa foi um dos primeiros cogitados para Batman Begins, pois de sombras este cara entende. Pi foi seu primeiro filme após a graduação, protagonizado por Sean Gullette, mesmo ator usado para seu filme de "formatura" – ou seja lá o nome dado para este tipo de graduação.
A título de curiosidade, Pi é a razão entre a circunferência de um círculo (parece pleonasmo, mas não é) e seu diâmetro. O número 3,14159... é apenas um "apelido", já que não passa de um arredondamento de um número que, na última análise de extensão feita, chegou a 51 bilhões de algarismos e dá o que fazer para cientistas do mundo que teimam em procurar um padrão nas sua seqüência. Já que o círculo é entendido como a forma perfeita, uma razão entre duas de suas principais medidas obedeceria um padrão igualmente perfeito, mas o conceito acabou entrando em conflito com a seqüência de Fibonacci (assunto bem trabalhado no Código Da Vinci) e a divina proporção, o que trouxe a espiral para a luz como a forma perfeita, levando ao entendimento de um cartão de crédito ter uma forma mais perfeita que um círculo. Não entendeu? Explicações aqui.
Para quem estava que nem eu, ainda não viu, e quer saber antes do que se trata para poder fugir do inferno, é até difícil fazer uma sinopse da obra. Atrás do DVD diz-se tratar de um matemático que tenta encontrar um padrão de comportamento por trás do número Pi, e vai às raias da loucura com isto. Na verdade, Maximillian Cohen, o tal matemático, não está nem aí para o Pi. Quem quase empacotou analisando-o foi seu ex-professor. Cohen está preocupado é em descobrir um padrão de comportamento para todos os sistemas da natureza, sob influência humana ou não, o que transformaria a teoria do caos em algo ultrapassado e traria para o domínio humano a capacidade de previsão do futuro pelo entendimento dos padrões elementares de comportamento (inclusive podendo reproduzir o passado, dado que todas as variáveis seriam conhecidas). Está difícil de entender? Não posso fazer nada, mandem uma carta pro Aronofsky reclamando.
Logo no início do filme o protagonista – capaz de fazer 357 vezes 893 de cabeça em 2 segundos - nos diz que tudo na natureza pode ser traduzido em números, que a matemática é a língua universal e tudo está sujeito a ela. De forma brusca somos apresentados à esta persona cética, agnóstica, com visão binária de tudo (talvez por isto o filme seja em preto e branco) e que sofre de dores lancinantes de cabeça desde que contradisse as orientações da mãe aos seis anos e olhou para o sol até quase perder a visão. O indivíduo vive num apartamento minúsculo onde só há banheiro, cama e um mainframe usado para sua tese sobre os padrões universais. Usa como modelo de testes a bolsa de valores, acreditando que, se encontrar o que procura, poderá prever todas as cotações daí para diante.
A pesquisa o leva a ser procurado insistentemente por uma empresa, enquanto usa como momento de desafogo os papos com o ex-professor ou breves debates com um judeu que sempre o encontra em um café. Escrever mais que isto é revelar spoilers, só que não dá para ser diferente, então selecionem abaixo para ver o resto. Se alguém já viu o filme pode me dizer se entendi certo e, caso negativo, me ajudar a acertar.
A despeito de parecer tratar sobre números e mensurações de uma mente cética, humana, confusa com os acontecimentos levando tudo a parecer sem nexo, a impressão que me deu é que o filme trata do divino. Da impossibilidade de entender e se comunicar com a perfeição da natureza, com a consciência por trás de todas as coisas, incompreensível para pessoas tão subdesenvolvidas como a gente, revelando a impossibilidade para quem tenta entender sem poder, ou sem ser puro o suficiente.
Em dado momento o ex-professor revela que seu computador sempre apresentava um bug quando chegava ao fatídico número de 216 algarismos, como se adquirisse consciência do mundo e não fosse capaz de lidar com a mesma. O próprio professor, por insistir no número, acabou tendo o seu bug e o derrame quase o matou. Hoje ele entende que deve viver a vida deixando que as coisas aconteçam, sem tentar meter-se onde não deve. Quando Cohen, o protagonista, acha os 216 algarismos e prevê a próxima cotação da bolsa, seu computador igualmente queima, como se também entendesse que não é digno daquela informação. Certo de que está chegando perto do que procura, começa a ter mais e mais dores de cabeça, chegando a ver um cérebro ensangüentado no metrô e na pia. Enquanto ele se afasta do cérebro, simbolizando um afastamento da tentativa de compreensão, de cutucar aquilo que não deve ser cutucado, permanece em paz. No entanto, ao tentar se aproximar, tocar a compreensão, as dores retornam e o levam a desmaiar.
Paralelamente, o grupo de judeus diz que o Torah é a palavra de Deus com um código numérico por trás e que os 216 algarismos seriam a solução para descobrir o nome perdido e verdadeiro de Deus, só que o matemático sabia que o número por si só não dizia nada, mas a combinação de algarismos escolhidos segundo o percurso de uma espiral traria o entendimento de todas as coisas. Ele nos revela então que, ao olhar para o sol na infância, antes de escurecer tudo, foi capaz de ver entre os raios o funcionamento do cosmo através da tal espiral, como se tocasse a divindade. A ousadia de tentar compreender veio punida com as dores lancinantes e o sangramento nasal que o acometem desde então.
A busca pela verdade fez com que seu ex-professor sentisse estimulado a pensar a respeito, ao tentar encontrar este padrão de funcionamento em um tabuleiro go, onde acredita-se que há infinitas possibilidades de combinações. Sofre então novo derrame e é internado.
Depois disto tudo nosso matemático entende que o que ele procura não deve ser perturbado. Que as coisas divinas não devem sofrer interferência humana. Que brincar de Deus é perigoso e não é permitido, a única retribuição vem da ira divina, mais cedo ou mais tarde. Então destrói seu computador, queima o papel onde está o número e enfia uma furadeira na cabeça. Após o corte de cena, ele aparece novamente em um parque, uma menina vem perguntar quanto seria 782 vezes 975 e ele simplesmente não sabe, sugerindo que perdeu suas faculdades extraordinárias após a furadeira na cabeça (não é de se espantar...rs..). Após, fita as folhas de uma árvore movendo-se aleatoriamente, mas o filme, ainda em preto e branco, parece ganhar mais vida.
Bem... isto posto, reforço que tudo é muito onírico, intenso, perturbador e propositalmente confuso. Por isto não sei se estas impressões têm sentido e certamente não sei se gostei do filme no conceito "Cinema é a Maior Diversão"® (direitos do Grupo Severiano Ribeiro, que os não-cariocas conhecem como Kinoplex). Se eu acertei, a mensagem até é fantástica, mas a forma como é passada é cáustica demais, apesar de marcar melhor. Que nem Closer, onde as relações não são cor de rosa, mas são como a vida de verdade.
Certeza mesmo, depois das escolhas do último fim de semana, é que vou encher a cara no próximo sábado e as escolhas na locadora certamente serão Capitão Sky, Bob Esponja e Alone in the Dark... cansei deste negócio de pensar.
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