domingo, 15 de março de 2020

Balão, papel & tesoura


De todas as idiossincrasias editoriais da Abril nos quadrinhos da Marvel e da DC, uma das mais curiosas, pra mim, era a supressão de textos. O objetivo, reza a lenda, era dar conta da enorme carga narrativa em formatinhos de 13,5 x 19 cm contra os folgados 17 x 26 cm dos originais. Dependendo do roteirista, não era mole mesmo. Chris Claremont que o diga. E Marv Wolfman, Steve Englehart, Len Wein, Bill Mantlo e mais uma caçambada de autores não muito conhecidos pela objetividade e poder de síntese.

Mas isso era só um detalhe de um expediente muito corriqueiro nas redações: o copy desk. Resumindo muito (ops), é a lapidação de um material previamente redigido - seja uma notícia, um artigo ou os diálogos de um gibi - até se tornar dinâmico e palatável para o leitor médio. É um processo que envolve várias etapas, da edição à revisão à remontagem à diagramação.

No caso das HQs da Abril, isso ia de um extremo ao outro. Podia ser uma adaptação comprimida de uma fala sem grandes prejuízos à trama, a omissão de referências a eventos não publicados anteriormente (criando uma bola de neve inevitável) ou a alteração e até a remoção de balões/recordatórios, já arranhando a lataria do material original - como foi o caso do nosso estimado Galactus multifacetado de John Byrne.


E, claro, isso chegava ao famigerado corte de páginas. Em alguns casos, parecia que o gibi era editado pelo próprio Edward Mãos-de-Tesoura!

Hoje, alguns leitores antigos não apenas defendem a supressão de texto, como vão além e elogiam os cortes de páginas da Abril. A alegação é que supostamente melhorava leituras que sofriam com textos prolixos e expositivos. Pura Síndrome de Estocolmo quadrinhística, ao meu ver.

Sempre preferi apreciar uma obra em sua totalidade, com todos os seus requintes e anacronismos, erros e acertos, partes legais e partes chatas (e o que seria das partes legais sem as partes chatas?). Enfim, a experiência Chris-Claremont-on-crack completa.

Essas malandragens de edição já existiam antes da Abril. Em muitos aspectos, a EBAL, a Bloch e a RGE faziam até pior. Mas também é inegável que foram os editores/tradutores Jotapê Martins e Hélcio de Carvalho que "aperfeiçoaram" o artifício quando a Abril adquiriu o licenciamento da Marvel em 1979. Inclusive isso é destrinchado sem nóias pelo próprio Jotapê quando está com bons entrevistadores (ao invés de ser lambido por algum youtuber) chegando mesmo a oferecer uma outra perspectiva do complexo cenário da época.

A verdade é que a cronologia fidedigna era impossível de ser transposta e mantida. O relógio estava correndo e algo precisava ser feito. Eram homens desesperados em tempos desesperados, goddamned! Mas esse é assunto pra outra hora.

(em alguma realidade paralela, Jotapê e Hélcio não copydeskaram nada, SAM, Heróis da TV e Capitão América foram canceladas após 6 meses e ficamos muitos anos sem material Marvel/DC no Brasil... acredite se puder)

A única certeza que tenho é da minha imensa admiração pelos letristas da época - profissionais como Edison Gasparim, Lilian Mitsunaga, João Anselmo N. Menezes, o pessoal do Estúdio Artecômix (de Jotapê, Hélcio e Dorival Lopes - os dois últimos fundadores da Mythos), etc. Mesmo recebendo um conteúdo consideravelmente reduzido, é quase inacreditável o fato de tudo aquilo ter sido feito à mão, balão por balão, recordatório por recordatório. Imagino que os ataques de LER eram frequentes ali - e não me refiro à leitura.

Mais embasbacante ainda são os tradutores e letristas franceses da Les Éditions Héritage, que, também à mão, traduziam tudo verbatim do original, sem pular uma única palavra e sem encostar nos balões e recordatórios. E ficava um troço espetacularmente zoado.




Pensou que aquele "F" era de "Brasil"?

Ps: esse post não foi copydeskado. Mas tenha uma ótima...

4 comentários:

Vinícius Alves Hax disse...

Ótimo texto. Dei uma gargalhada no fim hahaha

doggma disse...

Valeu, meu chapa! E enquanto ouvia a entrevista do Jotapê eu gargalhei também, mas já "chorei" muito por causa disso, rs...

Marcelo Andrade disse...

Salve Dogma! Interessante seu texto, lembrei da saga Terra de Ninguem que saiu naquela edição Premium onde so fui saber anos depois dos cortes de historias e as brechas na cronologia (luta do Robin c/ o Crocodilo) e depois de acessar a lingua inglesa reli e constatei diferença nos textos. Mas considerando essa cadeia de fatores da epoca joga-se c/ as cartas que tem. Abraço

doggma disse...

Aê, Marcelo!

Eita, quer dizer que também rolaram tesouradas em "Terra de Ninguém" nas Premium? Isso me surpreende, já que vi muita gente comentando que manteria suas antigas edições preterindo as da Eaglemoss...

Não sei por que catso, achava que a Abril havia cessado (ou amenizado) os cortes e supressões na era Premium. Ledo engano, pelo visto!

E hoje a novela continua, com as sagas parciais da Panini. Tipo esse volume light de "A Queda do Morcego".

O fator "É o que tem pra hoje" é de lascar.

Abraço!