quarta-feira, 15 de março de 2023

Que droga de vida


Jim Starlin pode ter passado a carreira imerso em sagas cósmicas e reflexões transcendentais, mas sempre foi um dos criadores mais socialmente conscientes dos quadrinhos mainstream. Com frequência, usou aquele pano de fundo galáctico, macro, para ilustrar os dramas do cidadão comum, os dilemas das pessoas invisíveis. E vez ou outra também mandou ver na crítica social pura e simples.

Um bom (e surpreendente) exemplo é a 2º história de A Saga do Batman Vol. 6.

Em Você Devia Ter Visto Ele..., o Morcego se depara com a dura realidade de um casal de irmãos que, apesar da tenra idade, já são sobreviventes da decadência da sociedade, da criminalidade e da falência do sistema. Tudo isso na ordem e em partes dolorosamente iguais.

A sequência em que o Maior Detetive do Mundo desvela o contexto dos irmãos não é muito elaborada, tampouco complexa. E nem deveria mesmo. O impacto dramático da cena que deu o título à trama é o que importa.


Não envelheceu um dia sequer.

Com roteiro de Starlin e desenhos de Dave Cockrum, a tocante história saiu originalmente em Batman #423, de setembro de 1988. Até há pouco, seguia inédita no Brasil, mas, num espaço de apenas dois anos, foi publicada duas vezes pela Panini — o que me deixa com um repetecão bonito nos arquivos. Mais um.

Ou seriam dois?

Quase cuspi o café na HQ quando bati o olho nessa comovente punchline. Como bom gibizeiro velhusco, não poderia deixar de notar uma certa, hmmm, semelhança dessa cena com uma outra anterior do mesmo autor, porém, para a concorrência.


A história Confronto Inesperado saiu aqui em O Incrível Hulk #37, em julho de 1986, formatinho da Abril — e lá fora, na Marvel Fanfare #20, em maio de 1985. Daquela vez, Starlin fez tudo, com exceção da arte-final, a cargo de Al Milgrom.

Na trama, o Coisa e o Dr. Estranho se unem para enfrentar o mago Xandu e seu inesperado... e esverdeado... assistente. Mas antes de encarar o pérfido feiticeiro e seus demônios interdimensionais, Ben esbarra no mal que habita cada esquina desse mundo cão. E ainda faz questão de lembrar que reclamar demais é um péssimo hábito.

Comentário social rapidinho antes de jogar o leitor numa das aventuras mais engraçadas e eletrizantes que já li nesta vida.

A dinâmica e a composição das duas cenas é a mesma. É quase como se ele tivesse mostrado essa página para o Cockrum três anos depois e falado: "tá vendo isso? Faz igual, só que diferente". E nem ficou tão diferente. Piorzinho, com certeza...

Até no autoplágio, lance de gênio. Coisa de Starlin.




Numa das minhas cenas prediletas da melodramédia de Mel Brooks, a mocinha, uma sem-teto, conversa com seu parceiro, um ex-bilionário e também sem-teto, que está em coma num hospital:

“Eu sei que você quer desistir, mas você está errado. Mesmo sem dinheiro, a vida é boa.”

No que ele balança a cabeça negativamente...

É só um momento dentro de um arco de redenção da adorável (mesmo cafona) fábula do veterano cineasta, mas que só traz verdades. Sem grana, a vida ainda é boa. Porém, dura.

E, algumas vezes, uma droga.

3 comentários:

Do Vale disse...

O Starlin vem depois do Max Collins e dá UM UP na mensal Batman. Período gostoso: nosso estimado Jim em uma mensal, Alan Grant e Breyfogle na outra… QUE FASE. Batman com o Starlin só não é totalmente redonda porque o Aparo não ficou por lá 100%.

Marcelo Andrade disse...

Salve Dogma! Starlin era outro completamente fora do seu ambiente lembrando que as vezes as nossas batalhas eram minuto a minuto, dia a dia...as vezes era
+ facil enfrentar ameaças galaticas do que lidar com causas completamente fora do alcance de algumas pessoas mas que pessoas como Wayne sempre era possivel reverter (lembrei do Guerra contra o Crime) socialmente. E pra pensar...muito.Ate....

doggma disse...

E, se não me engano, STARLÃO fez umas boas 15 edições do Bátima na sequência, Do Vale.

Pena que só numas duas desenhando - uma inédita da Detective e a outra, a do Morcego impostor que abre o vol. 1 da gloriosa BatSaga.

* * *

Marcelo, se parar pra pensar mesmo, Gotham era para ser o Brasil: alta concentração de renda (alô, Bruce!), corrupção em todas as esferas, população marginalizada... me admira não haver centenas de guetos e crackolândias por lá.