terça-feira, 18 de março de 2025
A Balada das Fúrias Femininas
Agosto de 1994 foi um divisor de águas. Naquele mês, saía a polêmica Green Lantern #54. Ao mesmo tempo em que a edição choca os leitores com a morte brutal de Alex DeWitt, a namoradinha do Lanterna Verde Kyle Rayner, também dá uma nova carreira à cabeleireira Gail Simone. Seu website Women in Refrigerators – título sem rodeios e autoexplicativo – leva o fato um pouquinho pra fora da bolha nerd e rende contatos com figuras-chave da indústria. Alçada a roteirista, Gail tem breves passagens pelo gibi dos Simpsons e pela Marvel, até que, em 2003, assina com aquela mesma DC Comics da historinha brutal, onde está até hoje.
Claro que a DC não é a única editora historicamente misógina e sexista. A Marvel, tradicionalmente mais progressista, também tem sua cota de esqueletos femininos no armário. Mas é na DC que, por algum motivo, a passada da boiada sempre manteve o cardio em dia. Um exemplo é que logo após cooptar Gail Simone, a distinta publicou a minissérie Crise de Identidade, de Brad Meltzer, com toda a sorte de atrocidades às quais a personagem Sue Dibny foi submetida.
Quando o assunto é idade de consentimento, então, a coisa vira mato. O que queriam fazer com a Mary Marvel foi além de qualquer sensatez. E que o diga o amor-estranho-amor de Slade Wilson e Dana Markov, Hal Jordan e sua bimbo de 13 anos Arisia Rrab (mais tarde, embaraçosamente "consertada" por Geoff Johns para 240 anos!) e prefiro nem mencionar o Terry Long, pelo amor de Nabokov.
A raiz disso tudo parece remontar a uma época em que o escoteirão Superman flertava com suas jovens primas Supergirl e Poderosa como se fosse o sugar daddy das galáxias. Aquele agosto de 1994 pode ser sido um divisor de águas para Gail Simone, mas para a DC, era uma terça-feira qualquer.
São algumas viagens que ficaram após a leitura de As Fúrias Femininas, mini em 6 partes publicada em 2019 lá fora e compilada pela Panini em abril de 2021 aqui dentro. E minhas expectativas com o quadrinho eram o exato oposto desse papo. Com a guarda de elite de Darkseid em pose épica e ameaçadora na capa de Joëlle Jones, imaginei uma aventura de ação militar-espacial 2000 ADística, curta, grossa e divertida. Mas o roteiro da escritora, diretora e indie rocker Cecil Castellucci prefere explorar a cena pelos bastidores. O que, a priori, é uma ideia ótima e, ao mesmo tempo, perigosamente desafiadora.
Poucos terrenos das HQs são tão férteis para analogias ao preconceito de gênero (ou a qualquer preconceito) e à luta pelas causas femininas (ou a qualquer causa) quanto o inferno totalitário de Apokolips. Em particular, as Fúrias Femininas parece que nasceram para isso. A abordagem de Castellucci fica evidente no logo nas primeiras páginas, com a Vovó Bondade supervisionando a 1ª formação da equipe: Auralie, Lashina, Bernadeth, Harriet Louca e Grande Barda. Ah, esses nomes.
Enquanto conclui anos de treinamentos mortais, Bondade relembra seus próprios perrengues em nome da ascensão social e profissional – incluindo éons de humilhações e gaslighting de seus camaradas até a submissão sexual para o chefão de pedra chapiscada.
Paradoxalmente, as Fúrias eram, de certa forma, "protegidas" pelo treino e condicionamento extremos. Quando são oficialmente apresentadas, passam a conhecer o mundo-cão-machista no qual Vovó Bondade se graduou.
Dentre elas, a maior vítima é Auralie, alvo constante de assédio e estupros por um oficial da alta cúpula. Apesar das tentativas de trazer alguma justiça para seu caso, Auralie só encontra indiferença por parte de Bondade e repúdio das demais Fúrias. Sororidade passa longe das hostes apokoliptianas. A única que desenvolve alguma empatia (tardia) é Barda, já a um passo de seu relacionamento com o Senhor Milagre e do passaporte para a liberdade na Terra.
Castellucci teve bastante cuidado com o momentum de sua trama. Tudo está muito bem encaixado na cronologia sem influir nos eventos clássicos. A HQ começa com o assassinato da mãe de Darkseid, Heggra, a mando do próprio. Depois, Scott Free inicia sua parceria com o líder rebelde Himon. Até a sofrida Auralie tem o mesmo destino de sua encarnação original, em Mister Miracle #9, de maio de 1972. Detalhes extras bacanudos que mostram que a roteirista leu todo o Quarto Mundo de Jack Kirby com atenção e mucho gusto.
A coisa só patina um pouco nas elipses da narrativa, nos entrequadros. Alguns cortes são muito truncados, fora que algumas ideias chafurdam no absurdo, como a sequência envolvendo Auralie, Barda e um cadáver desovado num cometa (!). O desenlace é puro nonsense da Era de Prata.
A arte da paulistana Adriana Melo é eficiente e esteticamente agradável – sua "jovem" Vovó Bondade é qualquer coisa de espetacular e implora por arcos com missões solo. A exceção são as cenas de luta, confusas como as de um gibi do StormWatch ou do Justice (lembra disso, Vicente?). A artista também evita aquelas panorâmicas industriais/tecnomedievais de Apokolips, um personagem à parte das sagas Kirbyanas. Se conscientemente ou não, vai saber. Mas ela, com absoluta certeza, teria cacife.
No final, surpreende ver que a chamadinha de capa "A Revolução no Quarto Mundo!" não fica apenas na promessa. A tal revolução, furiosa e feminina, realmente acontece, embora destoe da cronologia jogando tudo pra conta de um provável Elseworld. Uma ousadia que não consegue suprir totalmente a sua (enorme) ambição. Não foi dessa vez.
Deixemos isso, ainda, com a Martha Washington de Frank Miller e com a Halo Jones de Alan Moore. Mas valeu a tentativa.
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3 comentários:
Passei batido nessa, mas confesso que de quem ouvi falar, falou mal. Provavelmente, o fulano não tinha a visão de mundo (e quadrinho) que vossa senhoria tem. Porque o texto já me ganha pelo seu tour de force da degradação do feminino em gibis idos; dos quais, alguns fui testemunha ocular aqui mesmo. Não comprarei, mas baixarei pra já.
Aliás, aproveitando o timing, tem só alguns poucos dias que concluí minha leitura das 66 edições clássicas do Esquadrão Suicida ostrandiano. Posto isso, tenho comigo que essa capa é uma das grandes obras de arte da humanidade:
https://pbs.twimg.com/media/Gi8e2jeWsAAy88C?format=jpg&name=900x900
Por último, acho que o que você quis dizer com "aquelas panorâmicas industriais/tecnomedievais" era isso aqui, né?
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZAy929VhN10yBAb8hENmCVXHL_-CeoEgrGJPlYT_kV2XN56p6j-cC_L6FQ48qpdSIJjMwQv-1-VC6i-oeMq2cjU9PG1o-SPxIpS1Pyns64vwRHR5xMXGe_B3toMruVNcqcHYiXT634SNAZ91LMdMgxFNutjj7zrtrV-7k97zvo0XRWVcYsfkkdo2G3POY/s3975/Suicide%20Squad%20(1987-1992)%20-%20Apokolips%20Now%20v5-080.jpg
Abração.
Ahaha! Como esquecer o inacreditável Whatafuko Shinken do Justice? :D
Luwig: isso! Kirby não deixava passar uma edição. E Byrne se esforçava pacas pra reproduzir naqueles Novos Deuses dele.
O Esquadrão do Ostrander é bão bagarai. Li o que saiu no gibi da Liguinha, mas na época não con$egui pegar as outras. Agora tô acompanhando os HCs da Panini, mas o negócio tá a passo de tartaruga...
As Fúrias é uma HQ ok. O manifesto feminista e a política de Apokolips são pontos extras, mas isso é subjetivo. Achei interessante. E Woke pra caralho. :)
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Vicente: o segredo estava no mullet. Depois que tiraram, nunca mais ele conseguiu fazer aqueles movimentos impossíveis. Sacanagem!
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