quinta-feira, 13 de junho de 2019

Typhoid Ann

Ann Nocenti, minha heroína particular e reserva moral da Superaventuras Marvel, deu uma entrevista bacanuda para o podcast Women of Marvel.


O episódio completo pode ser conferido abaixo...


...ou aqui, para fazer um agrado às garotas com um buquê de page hits.

Jornalista, roteirista e ex-editora na Marvel, Nocenti sempre rendeu ótimas entrevistas. Ela não é de fazer média: normalmente solta o verbo até o limite possível antes de incomodar (muito) alguém, mas sempre com franqueza e bom humor adoráveis. E, mais importante: zero frescurite. Talvez seja herança da época pré-redes sociais, quando as pessoas conversavam olhando nos olhos e não se ofendiam tão fácil.

Sendo assim, salta aos ouvidos como as podcasters Sana Amanat e Judy Stephens desperdiçam o Fator Nocenti para um bom papo de boteco. Apesar da eventual quadrinhista se mostrar articulada e generosa, a condução é respeitosa e bem chapa branca. E termina dez minutos antes do tempo regulamentar. Sintomático.

Ainda assim, Nocenti fala bastante sobre sua juventude lendo velhas antologias do Pogo (o Bone original) e do Dick Tracy - cujos inimigos caricatos e disformes lhe criou um fascínio por vilões e monstros ainda criança - e sobre a dinâmica interna da Marvel com alguns causos de bastidores da era Jim Shooter - o ponto onde a entrevista poderia ter virado puro rock & roll, não fossem as comportadas apresentadoras/funcionárias da editora.

Outros pontos interessantes: a importância de Louise Simonson e da grande Marie Severin em sua carreira, a perícia de Archie Goodwin em mecânicas de plots, a ocasião em que Mark Gruenwald a pediu para matar a Mulher-Aranha logo num de seus primeiros trabalhos, como é a transição de editor-assistente para mentor ("e então você se demite"), suas crias (Longshot, Mojo, Espiral, Coração Negro), a influência de Chris Claremont na composição de personagens femininas fortes e os conselhos de Dennis O'Neil - também um jornalista - sobre como inserir questões políticas e sociais em gibis de super-herói.

Um dos trechos em que fica evidente a diferença entre as cascas-grossas gerações 1970-1980 e a superprotegida geração pós-milênio, é quando ela comenta sobre a "experiência de campo" necessária para contar uma boa história - coisa a própria Ann conhece bem. Curiosa também era a estratégia quase suicida do processo criativo. Com deadlines absurdas e trabalhando literalmente madrugadas adentro, "trazíamos muitas ideias malucas porque achávamos que elas iriam acabar numa lata de lixo".

A melhor parte, pra mim, é sobre os primórdios da relação com John Romita Jr. e a escalação da dupla, por intermédio de Ralph Macchio, para assumir o Demolidor pós-Miller/Mazzucchelli. Uma senhora responsabilidade. E, claro, o trecho onde que ela fala sobre uma de suas maiores personagens: Mary Tyfoid.

Segundo ela, a vilã tem uma dualidade e contradição equivalentes às do próprio Matt Murdock/Demolidor, que, por sua vez, ainda tem uma queda por garotas malvadas. Tal qual o Destemido, Mary lida o tempo todo com um reflexo distorcido dela própria. E Nocenti não se furtava em ir fundo na ferida. Isso bate com a impressão que sempre tive da personagem, cuja complexidade ia muito além do perfil crazy bimbo de uma Arlequina, por exemplo.

Perturbação de identidade dissociativa num contexto pop com super-heróis e supervilões? Você já via (lia) muito antes de Shyamalan e a trilogia Corpo Fechado.

Num dos meus trechos favoritos, Nocenti reflete sobre a evolução de Tyfoid, ficando mais e mais sombria até virar uma matadora de homens. Ou, nas palavras dela, "alguém que poderia invadir um abrigo para mulheres e checar nos arquivos o que cada homem fez com cada mulher e então ir atrás deles para retribuir cada ferimento".

Uma excelente ideia.


Lógico que a Mary Tyfoid é uma das minhas vilãs do coração. E a primeira a conquistar um lugarzinho na (disputada) estante...

8 comentários:

Dan Bickle disse...

Comecei a ler o Demolidor na fase dela e do Romitinha...e mesmo hj em dia aquilo ainda continua bom pra cacete.

doggma disse...

Sobreviveu ao tempo certamente. Com exceção do figurino da Tyfoid, completamente anos 80, rs!

Elrik disse...

Trilogia Corpo Fechado? Quais são os filmes?

Ótimo texto. Bom foi ver que li os textos links dos na data original de publicação... Obrigado pela companhia que você me fez durante esses anos todos. Que tal um post linkando todos os BlackZombies de Ouro? Ia ser bom rever as recomendações do site no decorrer dos anos.

Abração!

doggma disse...

Valeu, Elrik!

Todos os Zombies de Ouro podem ser puxados na tag:

https://blackzombie.blogspot.com/search/label/Zombie%20de%20Ouro

Ou individualmente:

ZdO 2006 - https://blackzombie.blogspot.com/2007/01/melhores-de-2006.html
ZdO 2007 - https://blackzombie.blogspot.com/2008/03/melhores-de-2007.html

**** período 2008-2011 não teve ***

ZdO 2012 - https://blackzombie.blogspot.com/2013/01/zombie-de-ouro-2012.html
ZdO 2013 - https://blackzombie.blogspot.com/2014/01/zombie-de-ouro-2013.html
ZdO 2014 - https://blackzombie.blogspot.com/2015/01/Zombie-de-Ouro-2014.html
ZdO 2015 - https://blackzombie.blogspot.com/2015/12/Zombie-de-Ouro-2015.html
ZdO 2016 - https://blackzombie.blogspot.com/2017/01/Zombie-de-Ouro-2016.html
ZdO 2017 - https://blackzombie.blogspot.com/2018/01/Zombie-de-Ouro-2017.html
ZdO 2018 - https://blackzombie.blogspot.com/2019/01/Zombie-de-Ouro-2018.html

A Trilogia do Shyamalan é Corpo Fechado (Unbreakable, 2000), Fragmentado (Split, 2016) e Vidro (Glass, 2019). Vale muito a pena fazer uma sessão com os três na sequência. É outra experiência.

Abração!

Marcelo Andrade disse...

Salve parceiro!
Personagem unica na casa das ideias.
Boas recordações de como uma mulher poderia ser absurdamente forte, louca e amavel.
A Queda do Rei do Crime qdo o Matt começa a derrubar o imperio por ela e vendo ela em estado fragilizado....cara vou ler essa bagaça tudo de novo....T+

doggma disse...

Marcelo, personagem única indeed. Ela abordava temas complexos e até hoje controversos (feminismo, sexismo, religião e direitos dos animais, p.ex.) sem ameaçar a qualidade narrativa. Hoje em dia, uma Gail Simone da vida faz um escarcéu ideológico dos diabos e não tem a metade da finesse.

Caramba, essa tua descrição da saga me deixou com vontade de reler tudo também, rs...

Abraço!

VAM! disse...

"... Boas recordações de como uma mulher poderia ser absurdamente forte, louca e amável..."

"... Caramba, essa tua descrição da saga me deixou com vontade de reler tudo também, rs..."

Companheiro, DDístas melhor do que recordar e reler é imaginar... [mandei e-mail]

Abs,
VAM!

doggma disse...

Ah, a Lucinda Dickey povoa meus sonhos mais primitivos.

https://www.youtube.com/watch?v=0my770nM5PY

Ela me "Domina", se é que você me entende... :c)