quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Tempestades perfeitas


É preciso reconhecer a resiliência. Em meio ao sempre tempestuoso (ops) mercado de quadrinhos nacionais, a Editora Tundra chega ao 5º volume da espetacular série Storm Integral. Por aqui, a obra do influente quadrinista britânico Don Lawrence amargava num limbo editorial desde que foi publicada de forma incompleta pra Abril, ainda nos anos 80. Precisou uma modesta, mas valente, operação a quatro mãos – dos irmãos e sócios Luis Panigassi e Julio Cesar Panigassi – para assumir essa missão.

Missão aparentemente impossível, visto que o perfil de Storm tirava da jogada tanto as pequenas que se especializaram em bangue-bangue, thrillers e sci fi Bonellianos quanto as médias como Pipoca & Nanquim e Comix Zone, que preferem não se arriscar em séries longas. Com profissionalismo, tino editoral afiado e campanhas muito bem sucedidas, a Tundra se tornou o elemento fora da curva necessário para fazer acontecer. E aconteceu.

Até aqui, um trabalho irretocável.

Ok... pra não estragar a criança, só precisam ser mais realistas ao estipular a previsão de entrega. Desse jeito, está tão acurado quanto uma pesquisa eleitoral.

Ps: todas as edições estão disponíveis na loja virtual da editora.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

A marcha do Pinguim


Numa das cenas mais absurdistas de Gotham, o Pinguim é trancado em um carro e enfiado numa prensa de sucata. Entre vidros estourando, metal se retorcendo e um fiapo de esperança, o malandro se salva usando apenas a lábia e o celular. A cena é impagável. Da mesma forma, o Pinguim-lixeiro de Danny DeVito em Batman: O Retorno também já exibia sua notável habilidade de improvisação e adaptação contra todas as probabilidades. Houve até quem o desconstruísse minuciosamente como uma boa tese sociológica.

Pinguim eleva as apostas e é de longe o maior produto artístico e comercial do personagem. Quadrinhos inclusos, desculpe. A HBO se esforçou. A minissérie em 8 partes vai até mais longe – não consigo pensar em nenhuma outra melhor neste ano. A criadora e showrunner Lauren LeFranc, que roteirizou vários episódios de Chuck e Agentes da S.H.I.E.L.D., estava acostumada com o suprassumo do enlatado esquemático e seguro para as crianças, mas a julgar pelo território sombrio e impiedoso de Pinguim, parece que ela saiu direto de um The Wire ou de um Sopranos.

O elenco é um primor. Colin Farrell desaparece dentro de toneladas de enchimento, maquiagem, ambição, carisma e sociopatia de seu Oswald "Oz" Cobb (gosto de pensar que seu papel igualmente grotesco em The North Water foi um protótipo bem sucedido). Que ator. Ele e a incrível Cristin Milioti, como Sofia Gigante, ex-Falcone, conduzem as danças de vida e morte da história. E ainda tem a veterana Deirdre O'Connell como Francis Cobb, a mãe do Oz, Clancy Brown como Sal Maroni, Shohreh Aghdashloo como a sua esposa, Nadia, e uma ponta de luxo de Mark Strong como Carmine Falcone, papel que pertencia a John Turturro em Batman, mas que ele declinou do repeteco.

Entre os nomes menos conhecidos, o destaque inevitável é do promissor Rhenzy Feliz como Victor Aguilar, um quase-Jason Todd do Pinguim. E Carmen Ejogo, que dá show (no bom sentido) como a prostituta Eve Karlo. Mas é visível que todos estavam numa sintonia finíssima ali, de Farrell até o estagiário que serve o cafezinho.


Havia um teto máximo a respeitar, afinal, a franquia DC é logo ali. Os roteiristas precisavam lidar com liberdade parcial e a inevitável barrigada. Não era surpresa nem para o gafanhoto mais bobinho que a coisa teria que terminar mais ou menos como começou. Um pouco atualizada, talvez, mas com o status quo intacto. Por mais que o Pinguim fosse ameaçado, espancado, baleado, apunhalado, eletrocutado, etc, ele não poderia morrer numa minissérie. Os demais, no entanto... E esta foi a deixa para brincadeiras cada vez mais nervosas. E algumas boas escadas também.

Só no episódio 6, "Gold Summit", existem dois momentos espetaculares, com Ejogo e Milioti brilhando no tenso diálogo entre Eve e Sofia, e Farrell subindo pelas tabelas de todas as premiações possíveis com um discurso para os chefes das Tríades de Gotham. A situação, com Oz propondo uma aliança em ambiente hostil, me lembrou do mesmo cenário adverso de Al Pacino e seu antológico discurso em City Hall – ressalto, "me lembrou", não que é igual, pelo amor do Bart. Pacino ali vociferou para os deuses. Mesmo com um personagem tão picareta e corrupto quanto o Oz.

Curiosamente, Pinguim é bem mais violento na sugestão e na atmosfera do que na violência explícita per se. Ok, é violento, é HBO, mas a exaustão sensorial após cada episódio não nega: é um genuíno assalto psicológico. Gatilhos são disparados por pessoas quebradas, gananciosas, ambíguas ou simplesmente perversas. É isso é ótimo.

Por mais que seja divertido acompanhar as aventuras de Oz e por mais empatia que algumas de suas convicções possam gerar, a minissérie reafirma seguidamente a sua natureza monstruosa. O arrepiante flashback dele com seus irmãos e a reveladora cena do dedo no cortador de charutos não deixam dúvidas.

E muito menos a soturna cena no final, à beira-mar. Lembrando que aquilo não foi o seu pièce de résistance...


SPOILER — ...afinal, sua mãe o fez jurar que a mataria caso ela ficasse irreversivelmente doente. Coisa que ele não faz e dá outra dimensão àquelas lágrimas. Mais do que Vic e Sofia, ela é, de longe, sua maior vítima.


Apesar da leve pisada no freio no último episódio, Pinguim manteve a alta octanagem até o fim. Excelente que o Batman não deu as caras. Uma das piores coisas dos quadrinhos é quando o mundo é tratado com se fosse um ovo de codorna, com todos se esbarrando e heróis oniscientes e onipresentes, prontos para estragar toda e qualquer negociata suspeita de esquina. Oito milhões de pessoas vivem em New York. São Paulo tem 11 milhões e meio. Faça as contas. Além do mais, o Batsinal fica ainda mais brilhante no céu quando o desafio sobe de nível. E subiu. Muito.

Plano de carreira reestruturado, o Pinguim hoje goza o status de anti-vilão. Por essa nem Burgess Meredith esperava.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

A última nota de Quincy Jones


Quincy Delight Jones Jr.
(1933 - 2024)

Se foi o Quincy Jones. Isso nem parece uma expressão de verdade. É quase como afirmar que "se foi a música" ou "se foi um instrumento". Lendário? Também é muito pouco.

Quincy não foi apenas o produtor, compositor e arranjador que moldou a cara dos anos 1980 com os estelares Off the Wall (1979), Thriller (1982) e Bad (1987), de Michael Jackson. E nem apenas o produtor e condutor de "We Are the World", um dos singles mais vendidos de todos os tempos. Do alto de seus 28 Grammys (e desculpe, mas, sim, isso vale muita coisa), a história de Quincy se confunde com a história da música pop contemporânea e da própria história da comunidade negra da América no século 20.

Neto de uma ex-escrava, a vida não facilitou para Quincy. Desde criança, quando vivia de pequenos roubos, até sua estreia na banda do jazzista Lionel Hampton e suas colaborações com nomes como Frank Sinatra, Ray Charles, Dinah Washington, Louis Armstrong, entre outros gênios, e ainda sentindo na alma toda a violência da segregação racial dos Estados Unidos, pode se dizer que Quincy fez e viveu o seu próprio milagre. Que vida. Que história.

Neste momento, é impossível não recomendar Quincy, documentário da Netflix co-dirigido por sua filha Rashida Jones (também uma ótima atriz) e por Alan Hicks. Se ainda não assistiu, recomendo demais. É excelente e imperdível.


Ninguém é eterno, lógico. Mas algumas vezes, vivenciar um momento histórico traz uma sensação de fim de festa absurdo e que daqui pra frente a ladeira abaixo será ainda mais íngreme. Essa é uma dessas ocasiões.

Rest in Power, Quincy Jones.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Velha Abril Jovem


Vou te dizer... os cortes e alterações dos gibis da Abril ainda me dão nos nervos, mas a diagramação, o letreiramento e os retoques – em condições 100% artesanais – eram incrivelmente agradáveis aos olhos. Especialmente aos olhos de um moleque com o conforto de um prático formatinho.

Os caras sabiam fazer.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Nobres Criaturas

Com estreia apenas em 5 dezembro na Max, Comando das Criaturas fez questão de entregar um trailer no bonde do Halloween ‘24.


No post sobre Lobisomem na Noite, sonhei acordado sobre como seria bacana se a DC chamasse o diretor Michael Giacchino para o... comando de um Comando das Criaturas. No fim das contas, a produção não virou um longa-metragem, tampouco um live action. É uma série animada em 7 episódios com o próprio James Gunn como roteirista e showrunner.

Apesar da mera existência do desenho parecer um arrojo, não é o 1º rodeio da macabra superequipe no formato. Em 2019, o grupo estrelou um dos curtas da divertidíssima série DC Showcase ao lado do Sgt. Rock. E com roteiro de Walter & Louise Simonson e Tim Sheridan e direção de Bruce Timm. Régua lá em cima, portanto.

Mas a prévia é deliciosa e o gore é de lamber os beiços. A nova formação, apesar de ser uma variação de qualquer Esquadrão Suicida, parece lindamente disfuncional: os desmortos A Noiva e Eric Frankenstein, a anfíbia Nina Mazursky, mais o Doutor Phosphorus, Robô Recruta e Doninha, queridinha(o) do Gunn. Todos sob a liderança de Rick Flag Sr. – pai do Jr., duh – e tentando impedir a feiticeira Circe de alguma coisa aí. Cara-de-Barro também dá as... caras.

Um curioso adendo é a dublagem de Viola Davis re-re-reprisando a sua Amanda Waller, hoje uma instituição DC. Em meio a tantos astros varridos para o limbo das adaptações, a sua versão da personagem passou incólume pelo fim do Snyderverso e pela Revolução Cultural de James Gunn. Façanha comparável à Poderosa e ao Pirata Psíquico sobrevivendo alegres e faceiros a Crise nas Infinitas Terras.
De resto, diria que só faltou uma frase de efeito estúpida e badass pra fechar a conta. Mas fuçando nas informações do vídeo...
“You wanted monsters? You got motherfuckin’ monsters.”
...acho que essa se enquadra no perfil.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Remember Di’Anno


Paul “Di’Anno” Andrews
(1958 - 2024)

Se foi, ou melhor, descansou Paul DiAnno, o eterno ex-vocalista do Iron Maiden. Para quem acompanha notícias sobre o mundo do heavy metal, não foi exatamente uma surpresa. O processo foi público, desgastante e abarrotado de velhas tretas que, inevitavelmente, definiram a sua imagem. Mas sabe o que dizem: quem não tem pecado...

A diferença do cantor para os Dave Evans da vida, é que ele tem dois clássicos absolutos no currículo: Iron Maiden, de 1980, estreia da Donzela, e seu sucessor, Killers, de 1981 – além de um dos LPs ao vivo mais espetaculares do metal, Maiden Japan, também de 1981. Estes serviram, literalmente, como matéria-prima para uma vida inteira.

Outra particularidade de Di’Anno estava em seu estilo vocal. Ao invés de seguir a escola Plant-Dio-Halford de seus pares da New Wave of British Heavy Metal, ele tinha uma pegada que, blasfêmia para alguns, era punk puro. Assim, não punk, puuuunk per se, mas transbordava atitude e crueza melódica. Impossível não associar.

O que não significava desleixo ou ausência de técnica. O hino “Phantom of the Opera” é, possivelmente, a música que melhor sintetiza os conceitos lírico e musical do Iron Maiden. Quiçá, do heavy metal tradicional como um todo. E com a voz assombrada de Di’Anno à frente, essencial.

Normalmente não seria lisonjeiro passar a vida sendo lembrado por duas obras lançadas há quase 45 anos. Mas neste caso, não poderiam haver lembranças melhores.

Essas, não são pra qualquer um.

R.I.P. Paul Di’Anno.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Lendas do Amanhã


“Quadrinhos de super-heróis enquanto mitos modernos do nosso mundo pós-Revolução Industrial personificando nossas esperanças, medos e ideais.”

Certeza que já vi isso em algum papo-cabeça McCloudiano ou no prefácio de alguma das trocentas reedições de Reino do Amanhã (alguém aí pegou a versão pocket?). É mesmo lapidar. E se existe um quadrinho que cabe à perfeição é a obra máxima de Mark Waid e Alex Ross.

O documentário The Legend of Kingdom Come promete estudar os processos de concepção e construção que deram origem a esta grandiosa saga de super-heróis, para muitos definitiva. Provavelmente. Entre as 5 mais, pelo menos. Certo, fechemos em 10.

A direção é de Remsy Atassi com produção executiva de Sal Abbinanti, o criador de Atomika: God Is Red, quadrinho indie resenhado aqui em posts imemoriais, e que é só agora soube ser o agente/gerente de negócios do Ross. Daí a presença massiva do reservado ilustrador nas promos do projeto, que além dele e do Waid, trará nomes como Todd MacFarlane, Bill Sienkiewicz, Jimmy Palmiotti, Amanda Conner, Paul Dini e outros – e tomara que entre esses "outros" esteja James Robinson, para quem o Ross propôs a ideia da HQ originalmente.

A campanha do doc no Kickstarter vai até o dia 25 próximo. Com a meta em US$ 50 mil e os apoios rasgando na casa dos 350 mil, as preocupações passam longe dos envolvidos. Mesmo assim, um projeto só acaba quando termina.

Quem acompanha a rotina de produções independentes e financiamentos coletivos sabe que o caminho até a sala de projeção pode ser longo e tortuoso. Vide A Riddle of Steel: The Definitive History of Conan the Barbarian curtindo um hiato eterno e o longa animado The Goon, 100% financiado pelo KS e que simplesmente desapareceu no limbo – este, realmente cheguei a tomar um porre no dia em que meta foi alcançada.

Se for o caso, só o Clark com o emblema preto e surtadão pra dar jeito.