quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Lendas do Amanhã


“Quadrinhos de super-heróis enquanto mitos modernos do nosso mundo pós-Revolução Industrial personificando nossas esperanças, medos e ideais.”

Certeza que já vi isso em algum papo-cabeça McCloudiano ou no prefácio de alguma das trocentas reedições de Reino do Amanhã (alguém aí pegou a versão pocket?). É mesmo lapidar. E se existe um quadrinho que cabe à perfeição é a obra máxima de Mark Waid e Alex Ross.

O documentário The Legend of Kingdom Come promete estudar os processos de concepção e construção que deram origem a esta grandiosa saga de super-heróis, para muitos definitiva. Provavelmente. Entre as 5 mais, pelo menos. Certo, fechemos em 10.

A direção é de Remsy Atassi com produção executiva de Sal Abbinanti, o criador de Atomika: God Is Red, quadrinho indie resenhado aqui em posts imemoriais, e que é só agora soube ser o agente/gerente de negócios do Ross. Daí a presença massiva do reservado ilustrador nas promos do projeto, que além dele e do Waid, trará nomes como Todd MacFarlane, Bill Sienkiewicz, Jimmy Palmiotti, Amanda Conner, Paul Dini e outros – e tomara que entre esses "outros" esteja James Robinson, para quem o Ross propôs a ideia da HQ originalmente.

A campanha do doc no Kickstarter vai até o dia 25 próximo. Com a meta em US$ 50 mil e os apoios rasgando na casa dos 350 mil, as preocupações passam longe dos envolvidos. Mesmo assim, um projeto só acaba quando termina.

Quem acompanha a rotina de produções independentes e financiamentos coletivos sabe que o caminho até a sala de projeção pode ser longo e tortuoso. Vide A Riddle of Steel: The Definitive History of Conan the Barbarian curtindo um hiato eterno e o longa animado The Goon, 100% financiado pelo KS e que simplesmente desapareceu no limbo – este, realmente cheguei a tomar um porre no dia em que meta foi alcançada.

Se for o caso, só o Clark com o emblema preto e surtadão pra dar jeito.

domingo, 29 de setembro de 2024

Se vai uma estrela


Kristoffer Kristofferson
(1936 - 2024)

Se foi o Kris Kristofferson. Um dos últimos ícones americanos de uma geração em seus estertores. Ídolo absoluto do country, além de um dos atores mais bacanas da velha Hollywood.

Kristofferson legou uma discografia extensa (e excelente) e uma filmografia premiadíssima e muito interessante. Logicamente, seus filmes mais lembrados são os sucessos Alice Não Mora Mais Aqui (Alice Doesn't Live Here Anymore, 1974) e Nasce uma Estrela (A Star Is Born, 1976), remake de uma produção de 1937, que, duh, estrelou ao lado de Barbra Streisand. Mas ele também protagonizou três clássicos de Sam Peckinpah – Pat Garrett & Billy the Kid (1973), Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia (Bring Me the Head of Alfredo Garcia, 1974) e Comboio (Convoy, 1978) – e o conturbado épico western O Portal do Paraíso (Heaven's Gate, 1980), de Michael Cimino. E ainda foi o chefão do crime que antagonizava Mel Gibson no divertido O Troco (Payback, 1999), entre muitos outros.

Sem contar que ele personificou o sidekick mais fodão de todos os tempos: Whistler, da trilogia Blade.


Como se o carisma e o talento não fossem o suficientes, Kristofferson ainda tinha algo raro: atitude. Ele foi o primeiro a apoiar a Sinéad O'Connor enquanto esta era vaiada pelo seu protesto contra os abusos da Igreja Católica.

Esse sim, foi um verdadeiro herói americano.

R.I.P. Kris Kristofferson

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

A mágica de Oz


Normalmente comento séries só quando acaba a temporada. Por melhor que possa parecer no início, a coisa pode virar e terminar de uma maneira bem diferente. Mas vez ou outra é preciso abrir uma exceção: a estreia de Pinguim, da HBO, foi uma das premieres mais bacanas que já assisti. E não apenas no segmento das adaptações de HQs, mas no geral. Pura mágica narrativa da velha Hollywood.

O episódio "After Hours" se passa imediatamente após Batman (Matt Reeves, 2022). A trama se concentra no novo status quo de Gotham City após sua trágica inundação e a morte do chefão do crime Carmine Falcone, interpretado aqui por Mark Strong. O roteiro da showrunner Lauren LeFranc e a direção de Craig Zobel são cirúrgicos. Grim & gritty com gordura zero, o episódio segue a pegada dos grandes thrillers de crime e máfia. Tem uma estrutura meio Os Sopranos, é verdade, mas também bebe na jornada dos underdogs de Al Pacino em filmes do Brian De Palma como Scarface e O Pagamento Final.

Tudo nos seus devidos limites, evidente, mas sempre honrando as referências.

Colin Farrell, excepcional, mais uma vez desaparece em seu Oswald "Oz" Cobb. Se o episódio fosse apenas seu diálogo na antológica cena de abertura já sairia com o jogo ganho. A história também traz boas surpresas como o jovem dominicano Rhenzy Feliz no papel de Vic Aguilar e a participação especialíssima de Clancy Brown como Salvatore Maroni, antigo rival de Falcone.

Mas o grande trunfo neste início foi a Cristin Milioti assustadora no papel da psicopata Sofia Falcone. Uma força da natureza e uma ladra impiedosa de cenas.

Até aqui, uma horinha e pouco de um crime perfeito.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Hora Cero Semanal presenta...


A Netflix me pegou de surpresa com esse teaser trailer de O Eternauta. Ao exemplo do sempre visado Akira, há tempos parei de acompanhar as notícias sobre a adaptação. Talvez estivesse imerso em negação ceticista, certo de que submeteriam a obra-prima de Héctor Oesterheld e Francisco Solano López ao mesmo processo de pasteurização de tantos outros. Mas até que a prévia sinaliza um outro caminho – e talvez o caminho certo.

A série em 6 episódios é uma produção argentina com estreia prevista para 2025. É criada e dirigida pelo premiado cineasta Bruno Stagnaro, que também coescreve a adaptação com Ariel Staltari. Pelo pouco que se vê, fizeram um bom uso do orçamento nos efeitos. Juan Salvo, o protagonista da HQ, é interpretado pela instituição celeste Ricardo Darín. Não brincaram em serviço.

Resta saber se O Eternauta, a série, sobreviverá ao legado do material, publicado originalmente entre 1957 e 1959 e que foi largamente influente através das décadas. A badalada Falling Skies (2011-2015), por exemplo, é um completo rip-off da obra de Oesterheld/López. Principalmente no que tange às metáforas à luta contra o fascismo e o autoritarismo, tão presente no mundo atual.

Talvez, em uma justiça poética, seu possível sucesso até lance novas luzes sobre aquilo que realmente importa. Mas sendo fiel ao espírito do quadrinho, já está de bom tamanho.

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Delboy nunca mais


Mike Mignola, uma garrafa de whisky e duas doses de amargura. Em entrevista ao Screen Rant, o criador do Hellboy fez uma turnê pelos natais passados: primeiro admitiu que ficou decepcionado com Hellboy II: O Exército Dourado (2008) e, depois, que as chances de Guillermo del Toro retornar à série original para fechar uma trilogia são quase nulas.

Num trecho particularmente tocante, fez uma DR bem intimista daqueles dias.
“Sendo capaz de olhar para trás agora, estou muito feliz com o tempo que passei com ele. Tivemos algumas aventuras, e eu acho que nós dois seguimos em direções diferentes. (...) É uma sensação muito estranha [onde] você simplesmente pensa, ‘Eu pensei que éramos amigos para a vida toda, mas eu nunca mais vou te ver de verdade’, e, infelizmente, eu acho que é meio que onde del Toro e eu estamos. Ele está em outro planeta. Estou muito feliz por conhecê-lo e trabalhar com ele quando trabalhar em um filme era com cinco ou seis caras, e não na carreira que ele tem agora.”
De fato, a atmosfera nos bastidores parecia transbordar brodagem.

Ainda assim, e por mais que tenha sido um divisor de águas para a sua maior criação, é melancólico ver o Mignola remoendo esse tópico mais uma vez. É meio um consenso geral que o Hellboy da versão do del Toro morreu há tempos. E isso não é necessariamente algo ruim.

Na entrevista, o quadrinista conta que ficou três meses trabalhando na pré-produção do 2º filme e que não viu nada daquilo no resultado final. Não surpreende, se "olhar para trás" com a sobriedade que só a idade traz.

Como aventura, o Hellboy 2004 batia na trave, salvo pelas boas caracterizações, produção esforçada e a transição daquele terror gótico dos quadrinhos. Uma transição a conta-gotas e com estética à Tim Burton, mas já era alguma coisa. O Exército Dourado, por sua vez, trocou esse aspecto por um clima de fantasia Tolkienesca. Tudo ficou suntuoso, onírico, inofensivo, fofo demais.

Cheguei à conclusão que del Toro fez aquilo que garantiu que nunca faria.


Lembro que escreveria uma resenha sobre o filme, mas fiquei com o editor de posts aberto por duas semanas sem conseguir redigir uma frase. Não queria falar mal, mas era impossível falar bem. Desisti.

Segui o conselho do velho monge de Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera (2003). É um bom conselho.


E serve tanto para coisas quanto para pessoas, viu Mignola?

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Adeus, Baterista


John Cassaday
(1971 - 2024)

Inacreditável é pouco, mas é verdade. Se foi o John Cassaday. Só 52. No curto tempo em que esteve neste lugar, nos maravilhou com sua arte única, repleta de simbolismos e assaltos sensoriais. Nem Planetary de Warren Ellis, nem Surpreendentes X-Men de Joss Whedon, nem Eu Sou Legião de Fabien Nury seriam os mesmos sem ele.

A bem da verdade, qualquer HQ melhorava 300% com seu traço.

Uma porrada dessas por si só já demanda um tempo para assimilar. No mesmo dia da partida de outra emblemática figura então, é dose pra sobrecarregar qualquer buraco negro informacional.

Descanse em paz, Cassaday. E muito obrigado.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Ao mestre com carinho


James Earl Jones
(1931 - 2024)

Se foi o venerável James Earl Jones. Terminou hoje, numa segunda-feira outrora qualquer, uma longa, produtiva e incrível vida. É estranho pensar sobre isso da perspectiva de um admirador. Ser confrontado com a finitude nunca é fácil – não por "medo", mas pela constatação, em alto e bom som, de que o relógio está correndo. No caso de Earl Jones, em alto e bom som com vozeirão de barítono.

Definitivamente não é o caso de revisitar uma longa lista de seus trabalhos: Dr. Fantástico (1964), Claudine (1974), Conan, o Bárbaro (1982), Campo dos Sonhos (1989), seu icônico Darth Vader na franquia Star Wars e vários outros (inclusive as nabas) nunca saíram da minha grade de programação.

Mas a torrente de notícias sobre o fato me lembraram de uma bela exceção.


The Great White Hope (A Grande Esperança Branca, 1970). Um filmaço a ser revisto em breve – talvez junto com o impagável mezzo remake mezzo paródia The Great White Hype (O Trambique do Século, 1996), com Samuel L. Jackson. Sessão pipoca de primeira.

Fim de uma era com certeza. Mas eterno já há um bom tempo também.

Thank you for everything, James Earl Jones!

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

A volta da Legião Alien


Quase não lembrava que o Predador e os Aliens são propriedade da Marvel desde 2020. Em que pesem dois crossovers de 2023 (Predator versus Wolverine e Predator versus Black Panther), a sensação de espera por material inédito com os Aliens foi de uns 57 anos. E finalmente veio, com pompa e muita circunstância: a mini em 4 partes Aliens versus Avengers tem roteiro de Jonathan Hickman com desenhos de Esad Ribić e a 1º edição chegou às lojas no finalzinho de julho, às vésperas da estreia de Alien: Romulus. Timing impecável. Esses editores Hyperdyne modelo 341-B com inibidores de comportamento são os melhores.

A trama se passa algumas décadas no futuro da "linha do tempo deslizante da Marvel"® e este primeiro capítulo é quase uma intro estendida. Após uma infestação sistematicamente plantada de Aliens, várias civilizações caíram, entre elas o Império Intergaláctico de Wakanda e a Terra. Mesmo os esforços dos meta-humanos foi insuficiente, dada a virulência da reprodução dos Xenomorfos. O planeta foi literalmente tomado por milhões de Aliens. Entre escombros de um mundo pós-apocalíptico, ainda persiste uma pequena resistência formada por Hulk, Capitã Marvel, Valeria Richards, o Homem-Aranha Miles Morales e por um sugestivo "Velho da Weyland".

Neste início, a pegada é de gibi cinematográfico, aos moldes do que Mark Millar fazia em seus tempos de Supremos. Muita ação, algumas dicas importantes espalhadas pelo caminho e um ou dois diálogos preparando os próximos rounds.

É bastante curiosa a efetivação da companhia Weyland no Universo Marvel. Parece que ela sempre esteve lá (e seu logo invertido para o "AVA" da capa reforça a impressão). O mesmo para a dupla de cientistas Shi'ar – e ainda considerando a real natureza de um deles – conduzindo experiências com Facehuggers impregnando Krees e Skrulls. É tão harmonioso e casual que chega a ser, putz, realista.

Esse "entrelaçamento quântico" de dois universos complexos chega a lembrar o mesmo mecanismo do clássico crossover dos X-Men com os Novos Titãs. Além de ser algo particularmente arriscado na perspectiva editorial.

Nos encontros dos Aliens com os super-heróis DC, como Batman, Superman e Lanterna Verde, foi dispensada a segurança do selo Elseworlds e a ação corajosamente se passa no presente da cronologia. Warren Ellis foi mais longe e usou os Aliens para fechar as contas do StormWatch.

Já Hickman, foi, digamos, mais conservador. Afinal de contas, a mini não é exatamente um What If...?. Não pegaria bem com os executivos da Disney um Xenomorfinho estourando o peito da Tia May e isso se tornando automaticamente canônico (viva!). Neste sentido, Aliens versus Avengers se aproxima do futuro sombrio da boa Saga dos Super Seven, da DC, com os super-heróis envelhecidos e derrotados num mundo tomado por uma invasão alien... ígena.

Quanto à adaptação, o próprio Hickman chegou a comentar: "foi complicado encontrar uma maneira de fazer essas duas coisas funcionarem juntas, mas acho que Esad e eu chegamos a algo que funciona para os fãs de ambas as franquias."

Ainda é cedo para um juízo de valor, mas, apesar da média alta, o roteirista parece ter sido pego na curva algumas vezes.

SPOILER

Por exemplo, se Valeria estava impregnada, por que os Aliens a atacavam?

FIM DO SPOILER

Evidente que é só a ponta do iceberg. E vindo da visão macro do Hickman, fiquei na pilha pelo escopo geral desse worst case scenario. O objetivo dessa edição #1 foi cumprido, portanto.

Aliens versus Avengers #2 chega às lojas (e às melhores importadoras do pedaço) em 6 de novembro. Looonge...

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Zeros e uns nos trouxeram até aqui


Em 30 de abril de 1993, a World Wide Web entrava em domínio público. Três meses antes, o Jesus Jones já antecipava em Perverse o admirável cybermundo novo que surgia no horizonte. Trinta anos mais tarde, temos que convir que não é exatamente admirável, mas tanto a WWW quanto o disco foram divisores de águas. Perverse é o mais ousado e ambicioso registro do grupo britânico. Caso tivesse dado continuidade às trips revisionistas de 1991 e 1992, ele seria presença certa na leva seguinte.

Aliás, fico admirado em saber que a banda também curte.

Perverse está numa lista dos “10 álbuns matadores de carreira” não é à toa. O Jesus Jones vinha de sensação alternativa no Reino Unido com o debut Liquidizer, de 1989, ao sucesso mainstream com Doubt, de 1991, puxado pelo hit “Right Here, Right Now”. Até ali, seu techno-rock (ou rocktrônica) era associado às cenas rave e indie dance, mas também tinha ressonância com o público das rádios e da MTV.

Com Perverse, a história foi diferente. O tom do álbum era denso e sombrio, com muita influência de industrial e trance. A capa, estranhíssima, trazia um luchador sob um filtro psicodélico e uma saturação vermelha estoura-retina.

O figura Mike Edwards (vocalista, letrista, guitarrista, tecladista, faz-tudo) experimentou uma imersão tecnológica completa. Escreveu tudo em casa usando um sampler Roland W-30. Foi o 1º álbum gravado inteiramente por computador, com exceção dos vocais. As faixas foram registradas em jurássicos disquetes de 3½ polegadas (lembra disso?). A produção ficou a cargo de Warne Livesey, que trabalhou em discos do The The e vários do Midnight Oil, entre eles o clássico multiplatinado Diesel and Dust. Ele certamente encontrou ali o material mais esquisito de sua carreira.

A obsessão de Edwards por ciberespaço e pela revolução digital imprimiu em Perverse contornos de álbum conceitual.

De cara, em “Zeroes and Ones”, ele prevê, com notável precisão, os impactos positivos e negativos da internet na vida das pessoas. “The Devil You Know” tem camadas trance, climas orientais e recortes de guitarra onde se percebe nitidamente a influência da banda suíça The Young Gods. As animadas “Get a Good Thing”, “Magazine” e “Don't Believe It” atualizam a velha sonoridade, as soturnas “From Love to War” e “Yellow Brown” navegam em ondas synth DepecheModescas, “The Right Decision” traz um groove electro infeccioso, “Your Crusade” é uma paulada pop/rave'n'roll, o tribalismo industrial de “Tongue Tied” emenda na raivosa techno com Ø BPM de “Spiral” e no grand finale com o épico progressive house “Idiot Stare”. Um álbum espetacular.

E complicado de tocar ao vivo. Do setlist atual, apenas três faixas comparecem. Como o próprio Edwards comentou, foi uma abordagem fascista: “'essa é a canção, nada mais importa'. Havia músicas no álbum que os membros da banda não tocaram." E mesmo nas exceções, a execução ainda é cabulosa.

É o caso de “The Devil You Know”, a música de Perverse mais próxima de um hit.


Em várias aparições na TV e mesmo no DVD Live at The Marquee, de 2005, o riff – na verdade, uma saraivada de guitarras sampleadas à “Skinflowers”, do TYG – soa precário ao vivo. A menção honrosa vai para a esforçada apresentação no programa The Word, na ocasião em que promoviam o single.

Mesmo inevitavelmente ultrapassado pelo futuro, Perverse ainda soa refrescante e intenso. Uma experiência memorável de ousadia eletrônica de uma banda de rock em plena era grunge.

E, ao contrário de todo aquele futurismo e tecnologia de ponta, tive a K7 original. Comprada na Mesbla.

Bons tempos, ainda que low tech.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

O culto ao Lagarto Mágico


Na zaga: Cook Craig, Ambrose Kenny-Smith, Michael Cavanagh e Lucas Harwood; No ataque: Stu Mackenzie e Joey Walker

Era mais fácil acertar na loteria do que antecipar o sucesso atual do King Gizzard & the Lizard Wizard. Esperaria isso de outras bandas cult ad eternum, tipo Gallon Drunk, The BellRays ou até o Squirrel Nut Zippers. Mas a evolução das espécies – e da indústria musical – tinha outros planos.

O sexteto australiano foi fundado por Stu Mackenzie, Joey Walker e pelo ex-integrante Eric Moore em 2010, quando estudavam indústria musical na Universidade RMIT, em Melbourne. Conheci em 2019, no pesadão Infest the Rats' Nest. Desde então, o grupo não saiu mais do play e das minhas listas de melhores do ano. E afirmo isso da forma menos deslumbrada possível, visto que os caras são ratos (ou lagartos) de estúdio: só em 2022 eles lançaram cinco álbuns. Contando com o excelente Flight b741, lançado este mês, eles já contam com 26 discos de estúdio. E olha lá se não desovaram mais algum enquanto termino de datilografar.

O mais impressionante é que cada registro trafega por um gênero diferente. Tem pra todo mundo: rock psicodélico, heavy metal, stoner, thrash metal, garage rock, space rock, música eletrônica, progressivo. E sem perder a identidade.

Mas nada é ao acaso. Além de multi-instrumentistas impecáveis, são operários 24/7, trabalhadores heavy duty. E é evidente que souberam, como poucos, ressignificar a desconstrução do disco ao seu favor.

O resultado são os shows concorridíssimos das últimas turnês – sold out na Europa e agora, nos Estados Unidos e Canadá. Ao que consta, o cachê atual da banda gira entre 150 e 300k (Bidens, of course) para datas na América do Norte. Abaixo da linha do Equador, deve ser o triplo do valor mais os rins e as córneas do público.

Mas até nisso o grupo resolveu subverter e está transmitindo cada apresentação do atual rolê em lives no seu canal do YouTube. A ação é qualquer coisa de espetacular. Seguem os shows de sábado e domingo últimos.




De Cleveland/Ohio a Newport/Kentucky são 402 km. Deve ter sido um corre daqueles. 24 horas de busão, toneladas de equipamentos, seis abençoados mais equipe. Operários mesmo.

Logo mais, tem outro.

Ps: as lives são removidas na sequência, mas sempre tem um samaritano que reposta. Lógico que não devem durar muito também.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Na Weyland-Yutani ninguém pode te ouvir gritar


Alien: Romulus é o melhor filme da série em 40 anos. Parece muito, mas não é tanto. E ainda por cima, relativo. Confira comigo no replay®:

Alien, o 8º Passageiro (1979) é um clássico do suspense/terror/ficção científica com Ridley Scott curtido no cinemão americano dos anos 1970. Aliens, o Resgate (1986) é James Cameron exercitando o melhor "bigger, stronger, faster" do mainstream hollywoodiano. Alien³ (1992), com um estreante David Fincher perdido numa produção caótica, é uma naba irredimível e, hm, irresgatável – o Assembly Cut de 2003 só expande o estrago. Alien: A Ressurreição (1997) é Jean-Pierre Jeunet: satírico, delirante, perturbador e não se leva a sério. O caça-níqueis Alien vs. Predator (2004), de Paul W. Anderson, foi uma tentativa de revitalização de duas marcas, bem como Aliens vs. Predator: Requiem (2007), dos irmãos Greg e Colin Strause. Ridley Scott à casa retorna no ambicioso Prometheus (2012) e no evasivo e fugaz Alien: Covenant (2017). Ufa.

Foram muitas transfusões de sangue ácido. Isso, porém, não afetou a força da franquia na cultura pop. Especialmente nas HQs e no multimiliardário mundo dos games.

O diretor uruguaio Fede Álvarez sabe disso e joga pra galera. Sagaz, ele seguiu a mesma diretriz que adotou em sua contribuição na franquia Evil Dead: o cânone é sagrado. Tanto a direção quanto o roteiro, co-escrito com o conterrâneo e parceiro de longa data Rodo Sayagues, dispensa invencionices e reviravoltas, optando por extrapolações em cima das regras do jogo. Seja na narrativa ou nos conceitos, Romulus é intimamente ligado aos filmes anteriores – mesmo o 4º, A Ressurreição, que se passa ainda mais no futuro. Não que o filme seja apenas para iniciados no universo do Alien, pelo contrário. É totalmente acessível. Mas é que flui delícia quando você tem aquela bagagem.

Aliás, pelo que pesquei por aí, o filme também tem relações com o game Alien: Isolation, protagonizado pela filha da Ripley, Amanda. E que ainda hei de jogar, com a benção de São Bishop.


Se Álvarez foi minucioso em sua pesquisa, em certos momentos, todas essas referências acabam estourando na telona como um chestburster. O diretor não é sutil em seu fanservice e o que deveria ser uma piscadela cool para o fandom, acaba soando redundante e desnecessário. É um recurso para ser usado com moderação. Nada que embace a experiência, contudo. O uruguaio é dos bons. Sabe administrar personagens e montar cenários de tensão como poucos de sua geração.

Romulus se passa no ano 2142 de Nosso Senhor, ou seja, 20 anos após os eventos de Alien e 37 anos antes de Aliens, o Resgate. Logo na abertura, vemos o que sobrou da nave-cargueiro USCSS Nostromo e aí, confesso, senti aquela baforada criogênica na espinha. Afinal, ali jaz um obelisco do fatídico destino dos tripulantes do filme original.

A história é protagonizada por Rain, uma jovem que tenta sobreviver em uma colônia de mineração de propriedade, adivinha, da megacorporação Weyland-Yutani. O ambiente é inóspito e repleto de doenças relacionadas à carga absurda de trabalho. Tudo é piorado por um sistema burocrático criado para impossibilitar a evasão de trabalhadores, remetendo à odiosa e muito real escravidão por dívida – coisa que só um latino se daria ao trabalho de transpor para um blockbuster. Órfã e acompanhada apenas de Andy, seu "irmão adotivo", Rain sonha em se mudar para uma colônia com um mínimo de qualidade de vida, onde se pode ver um sol e não precisa respirar pó de minério até solidificar a alma.

A oportunidade surge quando seu ex-namorado Tyler, ao lado da irmã Kay, do primo Bjorn e sua namorada Navarro, descobrem uma espaçonave da companhia à deriva e em rota de colisão com os anéis que circundam o planeta. A ideia é alcançar sua órbita antes do choque e catar as suas câmaras de crioestase – o único modo de burlar os 9 anos necessários para chegar até a colônia independente Yvaga ("céu" ou "paraíso" em guarani!). Chegando lá, descobrimos que o lugar passou por um inferno de Aliens e Facehuggers. E ainda não saiu dele.

Uma coisa que Alien e Aliens, o Resgate (e, neste mérito, O Predador também) legaram aos jovens cineastas é o valor de um coadjuvante. Mesmo com o espectador antecipando quem iria pro saco já nos primeiros minutos de filme, o carisma do personagem era tão grande que batia aquela dorzinha no coração quando o mesmo virava presunto. É uma arte que se perdeu com o tempo, infelizmente. Em Romulus não é diferente, embora tenha boas atuações e motivações do pequeno núcleo principal.


A ótima Cailee Spaeny, que tem feito um 2024 impecável, honra a camisa e o underwear das heroínas da série. E o britânico David Jonsson brilha no papel de Andy com duas composições assustadoramente diferentes. O modo como o roteiro usa a sua natureza como um mecanismo para o desastre é nada menos que espetacular.

O filme também é bastante engenhoso em criar situações com deadline curta/sendo encurtada e literalmente mordendo os calcanhares. São momentos de quebrar o encosto da cadeira. A dinâmica das cenas em gravidade zero é sensacional. Como se não bastasse, Romulus traz as maiores sequências de ação Facehugger da série. Os sirizinhos transudos finalmente dominaram os holofotes e nunca foram tão esforçados em tela. Francos candidatos ao próximo Oscar.

Já na parte das extrapolações em cima do cânone, a coisa fica ainda mais interessante e, por que não, controversa.


☣️ ☣️ ☣️ SPOILERS ☣️ ☣️ ☣️

Rolou uma celeuma online por causa do uso da imagem gerada por IA do saudoso Ian Holm como o andróide Rook. Sou totalmente a favor dos atores em relação ao uso indiscriminado de IA, porém o caso foi de inserção digital póstuma. E numa referência óbvia a um dos personagens mais icônicos de sua brilhante carreira, o psicopático robô Ash, do 1º filme. Essa passa, junto com o Peter Cushing/Moff Tarkin virtual de Rogue One. São homenagens, pô.

A substância negra extraída pela Weyland-Yutani de um casulo Alien nos destroços da Nostromo remete à arma biológica criada pelos Engenheiros em Prometheus/Covenant. O que talvez explique a semelhança facial do The Offspring (o grotesco híbrido humano-xenomorfo) com os gigantes albinos. Gah!

Um dos efeitos negativos da volta dessa substância é o fato dos Facehuggers agora serem escuros, sendo que a cor de pele humana meio amarelada que eles sempre tiveram era muito mais aflitiva. Inclusive, em determinadas cenas, os Aliens ficam parecendo o Venom.

E o mais grave: a fascinante cenografia biomecânica criada pelo gênio H. R. Giger deu lugar a um reboco de piche disforme e genérico. Blasfêmia.

Casulo Alien pós-troca de pele. Boa adição ao mythos! E rendeu a nervosa e nojentíssima cena da colonoscopia elétrica que culminou na morte de Bjorn.

Na saída do cinema, pensei: Aliens respeitando um trabuco não faz sentido. Mas lembrei que provavelmente foi o que eles enfrentaram quando tomaram a estação. Os ETs cabeçudos não são burros.


☣️ FIM DOS SPOILERS ☣️


Mesmo em suas poucas deficiências, Alien: Romulus incita bons papos de boteco – só para, no final, chegar à conclusão que valeu muito o preço (salgado) do ingresso. Sem contar que os efeitos são de cair o queixo. É um filmão que merece ser visto numa telona.

Foi maravilhoso e inesperado esse reencontro com a franquia em grande forma. E mais ainda a vontade de conferir o filme no cinema de novo. Fazia um tempinho que não rolava...